ESCREVE-Me assim
Tarciso Prado, com data de 12-11-71: "Tito
Filho. Sou seu fã incondicional e ouvinte assíduo. Por isso mesmo lhe escrevo
para perguntar a razão por que tem silenciado em tôrno dos romances de O. G.
Rêgo de Carvalho, considerado em São Paulo, pelo arguto crítico Homero
Silveira, como um dos maiores romancistas do Brasil, no momento, superior,
talvez, a Jorge Amado e a Érico Veríssimo, e para mim, sem dúvida, o maior
romancista não do Piauí, mas de todo o Brasil". OBSERVAÇÃO. Tarciso representa, no meu espírito, uma consagração.
Consagração de inteligência, de sinceridade, de talento. Não esqueço o triunfo
em Fortaleza. Triunfo da peça "Lampião". Tarciso, Ary Sherlock
lecionando representação teatral no "José de Alencar", Gomes Campos,
o autor da peça, enricado de fama. O negócio foi o seguinte: o professor Campos
escreveu a peça, ensaiou-a, levou-a ao palco no Colégio Diocesano. Aplausos. E
a peça poderia apresentar-se noutra cidade brasileira? Seria vaiada?
Organizou-se corpo de jurados para decisão. Dêle participei. Os cinco primeiros
juízes manifestaram-se contra. Vaia na certa. Falei como sexto. Defendi a peça.
Considerei-a mensagem social. Sétimo juiz: Têrmes Resende. Solidarizou-se
comigo Gomes Campos, exigiu que eu fôsse a Fortaleza. Seria, como fui, o
apresentador de "Lampião" ao público. Resultado: conteúdo e
interpretação aplaudidíssimos. O Piauí renunciava ao mêdo. Agora Tarciso
pratica contra mim uma injustiçazinha. Acusa-me de silêncio com relação aos
triunfos literários de O. G. Rêgo de Carvalho. Nunca dos nuncas. Em programa
radiofônico e nesta coluna tenho divulgado notas elogiosas ao romancista
piauiense, de quem recebi os dois últimos romances. Acontece que ainda não os
li. Iniciei leitura de um - leitura meditada. Depois da leitura, sairá a
crítica. Tarciso, com a carta, mandou-me a opinião de Homero Silveira, a seguir
transcrita, integralmente:
“O Autor é piauiense. Já publicou dois outros romances - "Ulisses
entre o Amor e a Morte" e "Rio Subterrâneo". Oeiras, seus velhos
sobrados, suas ruínas, o rio, as árvores são personagens tão vivos como os
humanos. E no meio dêles, o Autor, uma das personalidades mais marcantes do
Piauí, dono de uma sensibilidade estranha e multiforme, de uma linguagem
penetrante, um estilo que não se iguala a nenhum dentro da moderna ficção
brasileira. Não é o Rio nem tão pouco São Paulo que possuem um dos maiores
romancistas do Brasil, neste momento. É o Piauí, êsse distante e ignorado
Piauí, pobrezinho e desprezado entre os Estados do País. Nem mesmo a Bahia com
Jorge Amado. Nem o Rio Grande com Érico Veríssimo. Exageramos? Então é preciso
ler Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho. Nós o vamos acompanhando desde o seu
primeiro romance, que nos causou grata impressão. Passamos, recentemente, pelo
seu enorme "Rio Subterrâneo", que nos deu um dos maiores impactos de
nossa já longa carreira de crítico literário. O estreante de "Ulisses
entre o Amor e a Morte", nesta altura um escritor feito, preocupado com a
vivência estranha de uma porção de adolescentes marcados pela dor, as
incertezas e as angústias, em "Rio Subterrâneo" ultrapassou-se. Êste
é o mais desesperado livro que já se escreveu no Brasil. Denso, profundo,
nervoso, revolvendo íntimas perplexidades, todo movimentado num clima tenso de
neurose, quando não de loucura franca, ficará em nossa ficção ao lado do que
escreveu, por exemplo Lúcio Cardoso, êsse incomensurável Lúcio Cardoso. Mas não
ficará apenas como companheiro porque Rêgo de Carvalho é da família de Kafka,
de Dostoiévski e de quantos escritores subterrâneos por aí andaram derramando
suas perplexidades e angústias íntimas. Custa crer que viesse do Piauí um Autor
assim. "Somos todos inocentes" continua a saga dêste esquisito
piauiense. É sempre a velha Oeiras com suas tempestades, seus casarões
penumbrentos, seu rio e o grande sobrando cheio de tragédia que impõe a
temática dominante. É o Piauí antigo, preconceituoso, afogando sentimentos,
distorcendo as almas, criando neuroses inconfessáveis. A solidão, as mágoas que
não dizem se aí estão sempre presentes. Só que desta vez Rêgo de Carvalho
resolveu mudar de rumo na sua maneira tão peculiar de contar as coisas.
Continua narrando excelentemente, prendendo pela originalidade, pela trama bem
composta. Mas já não mais resolve com aquela acuidade quase impiedosa o íntimo
atormentado de suas extraordinárias criaturas. Os dramas existem. Permanecem as
incertezas extenuantes. O clima sombrio da velha Oeiras aí está com o famoso
sobrado. Só que as personagens não mais se movimentam naquele tenebroso e fascinante
ambiente de psicose e pasmo. São mais simples, talvez mais humanas. Domina-as
em lugar do subconsciente escuro e estranho - fonte de tôdas as angústias - o
instinto naquele misto de sensibilidade animal e imediata, própria das pessoas
primitivas, sem grandes lances íntimos, sem problemática. Novelesca, a
narrativa flui correntia, quase linear. Bem comportada, por vêzes bem
comportada demais. Continuamos admirando O. G. Rêgo de Carvalho. É ainda e
sempre o maior narrador do Piauí e um dos maiores do Brasil. Por uma questão de
gôsto, nós que somos essencialmente dostoievskianos e que nos sentimos atraídos
pelos poetas possessos e malditos, pela problemática profunda, a narrativa
mágica, preferimos "Rio Subterrâneo" a "Somos todos inocentes".
"Rio Subterrâneo" propõe uma tese e a demonstra com perigo para a
própria integridade mental de seu Autor. É um livro corajoso. A narrativa por
vêzes se perde em meados escusos. Tende ao caótico. E é precisamente aí que o
grande narrador se afirma com tôdas as qualidades pessoais, inconfundíveis
dentro da temática brasileira quase sempre realista quando não naturalista,
sociológica, pairando na superfície das coisas, sem nenhuma densidade, quase
diríamos subdesenvolvida. O. G. Rêgo de Carvalho em "Rio Subterrâneo"
afrontou a temática profunda, existencial. Tendeu para uma atmosfera
francamente psicótica, a ponto de correr o perigo de sua própria desintegração
mental. Por isso mesmo é grande. Não tem paralelo na literatura brasileira
contemporânea a não ser ao lado de Lúcio Cardoso e de Breno Aciólo, aos quais
ultrapassa em certo sentido. Está em preparo nôvo romance cujo título já se
anuncia: "Era noite, Afonsina". Queremos crer que obedeça mais à nova
orientação que seu Autor adotou e não à anterior de "Ulisses" ou
"Rio Subterrâneo". Ganhará o Autor maior número de leitores,
evidentemente. Os brasileiros não estão afeitos ao romance psicológico, à
temática profunda. E para a estabilidade emocional do Autor também acreditamos
que seja até salutar. Aguardamos o nôvo romance. E enquanto aguardamos, vamos
ler O. G. Rêgo de Carvalho. Êle redime as nossas leras dessa enxurrada de
coronéis e lobisomens que infesta a literatura dêstes últimos tempos e nos faz
esquecer a borracheira de CEM ANOS DE SOLIDÃO".
In: TITO FILHO, A. Caderno
de anotações. Jornal do Piauí,
Teresina, p. 3, 1 dez. 1971.
Nenhum comentário:
Postar um comentário