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terça-feira, 19 de agosto de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (176)

ESCREVE-Me assim Tarciso Prado, com data de 12-11-71: "Tito Filho. Sou seu fã incondicional e ouvinte assíduo. Por isso mesmo lhe escrevo para perguntar a razão por que tem silenciado em tôrno dos romances de O. G. Rêgo de Carvalho, considerado em São Paulo, pelo arguto crítico Homero Silveira, como um dos maiores romancistas do Brasil, no momento, superior, talvez, a Jorge Amado e a Érico Veríssimo, e para mim, sem dúvida, o maior romancista não do Piauí, mas de todo o Brasil". OBSERVAÇÃO. Tarciso representa, no meu espírito, uma consagração. Consagração de inteligência, de sinceridade, de talento. Não esqueço o triunfo em Fortaleza. Triunfo da peça "Lampião". Tarciso, Ary Sherlock lecionando representação teatral no "José de Alencar", Gomes Campos, o autor da peça, enricado de fama. O negócio foi o seguinte: o professor Campos escreveu a peça, ensaiou-a, levou-a ao palco no Colégio Diocesano. Aplausos. E a peça poderia apresentar-se noutra cidade brasileira? Seria vaiada? Organizou-se corpo de jurados para decisão. Dêle participei. Os cinco primeiros juízes manifestaram-se contra. Vaia na certa. Falei como sexto. Defendi a peça. Considerei-a mensagem social. Sétimo juiz: Têrmes Resende. Solidarizou-se comigo Gomes Campos, exigiu que eu fôsse a Fortaleza. Seria, como fui, o apresentador de "Lampião" ao público. Resultado: conteúdo e interpretação aplaudidíssimos. O Piauí renunciava ao mêdo. Agora Tarciso pratica contra mim uma injustiçazinha. Acusa-me de silêncio com relação aos triunfos literários de O. G. Rêgo de Carvalho. Nunca dos nuncas. Em programa radiofônico e nesta coluna tenho divulgado notas elogiosas ao romancista piauiense, de quem recebi os dois últimos romances. Acontece que ainda não os li. Iniciei leitura de um - leitura meditada. Depois da leitura, sairá a crítica. Tarciso, com a carta, mandou-me a opinião de Homero Silveira, a seguir transcrita, integralmente:

O Autor é piauiense. Já publicou dois outros romances - "Ulisses entre o Amor e a Morte" e "Rio Subterrâneo". Oeiras, seus velhos sobrados, suas ruínas, o rio, as árvores são personagens tão vivos como os humanos. E no meio dêles, o Autor, uma das personalidades mais marcantes do Piauí, dono de uma sensibilidade estranha e multiforme, de uma linguagem penetrante, um estilo que não se iguala a nenhum dentro da moderna ficção brasileira. Não é o Rio nem tão pouco São Paulo que possuem um dos maiores romancistas do Brasil, neste momento. É o Piauí, êsse distante e ignorado Piauí, pobrezinho e desprezado entre os Estados do País. Nem mesmo a Bahia com Jorge Amado. Nem o Rio Grande com Érico Veríssimo. Exageramos? Então é preciso ler Orlando Geraldo Rêgo de Carvalho. Nós o vamos acompanhando desde o seu primeiro romance, que nos causou grata impressão. Passamos, recentemente, pelo seu enorme "Rio Subterrâneo", que nos deu um dos maiores impactos de nossa já longa carreira de crítico literário. O estreante de "Ulisses entre o Amor e a Morte", nesta altura um escritor feito, preocupado com a vivência estranha de uma porção de adolescentes marcados pela dor, as incertezas e as angústias, em "Rio Subterrâneo" ultrapassou-se. Êste é o mais desesperado livro que já se escreveu no Brasil. Denso, profundo, nervoso, revolvendo íntimas perplexidades, todo movimentado num clima tenso de neurose, quando não de loucura franca, ficará em nossa ficção ao lado do que escreveu, por exemplo Lúcio Cardoso, êsse incomensurável Lúcio Cardoso. Mas não ficará apenas como companheiro porque Rêgo de Carvalho é da família de Kafka, de Dostoiévski e de quantos escritores subterrâneos por aí andaram derramando suas perplexidades e angústias íntimas. Custa crer que viesse do Piauí um Autor assim. "Somos todos inocentes" continua a saga dêste esquisito piauiense. É sempre a velha Oeiras com suas tempestades, seus casarões penumbrentos, seu rio e o grande sobrando cheio de tragédia que impõe a temática dominante. É o Piauí antigo, preconceituoso, afogando sentimentos, distorcendo as almas, criando neuroses inconfessáveis. A solidão, as mágoas que não dizem se aí estão sempre presentes. Só que desta vez Rêgo de Carvalho resolveu mudar de rumo na sua maneira tão peculiar de contar as coisas. Continua narrando excelentemente, prendendo pela originalidade, pela trama bem composta. Mas já não mais resolve com aquela acuidade quase impiedosa o íntimo atormentado de suas extraordinárias criaturas. Os dramas existem. Permanecem as incertezas extenuantes. O clima sombrio da velha Oeiras aí está com o famoso sobrado. Só que as personagens não mais se movimentam naquele tenebroso e fascinante ambiente de psicose e pasmo. São mais simples, talvez mais humanas. Domina-as em lugar do subconsciente escuro e estranho - fonte de tôdas as angústias - o instinto naquele misto de sensibilidade animal e imediata, própria das pessoas primitivas, sem grandes lances íntimos, sem problemática. Novelesca, a narrativa flui correntia, quase linear. Bem comportada, por vêzes bem comportada demais. Continuamos admirando O. G. Rêgo de Carvalho. É ainda e sempre o maior narrador do Piauí e um dos maiores do Brasil. Por uma questão de gôsto, nós que somos essencialmente dostoievskianos e que nos sentimos atraídos pelos poetas possessos e malditos, pela problemática profunda, a narrativa mágica, preferimos "Rio Subterrâneo" a "Somos todos inocentes". "Rio Subterrâneo" propõe uma tese e a demonstra com perigo para a própria integridade mental de seu Autor. É um livro corajoso. A narrativa por vêzes se perde em meados escusos. Tende ao caótico. E é precisamente aí que o grande narrador se afirma com tôdas as qualidades pessoais, inconfundíveis dentro da temática brasileira quase sempre realista quando não naturalista, sociológica, pairando na superfície das coisas, sem nenhuma densidade, quase diríamos subdesenvolvida. O. G. Rêgo de Carvalho em "Rio Subterrâneo" afrontou a temática profunda, existencial. Tendeu para uma atmosfera francamente psicótica, a ponto de correr o perigo de sua própria desintegração mental. Por isso mesmo é grande. Não tem paralelo na literatura brasileira contemporânea a não ser ao lado de Lúcio Cardoso e de Breno Aciólo, aos quais ultrapassa em certo sentido. Está em preparo nôvo romance cujo título já se anuncia: "Era noite, Afonsina". Queremos crer que obedeça mais à nova orientação que seu Autor adotou e não à anterior de "Ulisses" ou "Rio Subterrâneo". Ganhará o Autor maior número de leitores, evidentemente. Os brasileiros não estão afeitos ao romance psicológico, à temática profunda. E para a estabilidade emocional do Autor também acreditamos que seja até salutar. Aguardamos o nôvo romance. E enquanto aguardamos, vamos ler O. G. Rêgo de Carvalho. Êle redime as nossas leras dessa enxurrada de coronéis e lobisomens que infesta a literatura dêstes últimos tempos e nos faz esquecer a borracheira de CEM ANOS DE SOLIDÃO".



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 3, 1 dez. 1971.

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