"GEOGRAFIA
ILUSTRADA", edição dedicada ao Piauí, recentemente vendida, estampa o
seguinte: "Em meados do século XVII
os rebanhos começaram a se distanciar do rio São Francisco. A partir do Recife
e de Salvador, os sertanistas convergiram para a região do médio Parnaíba,
entre o Gurguéia e o Poti. Entre êles, dois nomes se destacam: Domingos Afonso
Mafrense, rendeiro da Casa da Tôrre de Garcia d'Ávila, e o bandeirante paulista
Domingos Jorge Velho. Deixando o São Francisco, desceram os rios Gurguéia e
Poti, percorrendo a região que vai do Gurguéia ao Poti".
Pela indicação transcrita, entende-se que o
português Mafrense e o paulista Jorge Velho andavam juntos, em busca das terras
piauienses.
Muito se tem discutido a respeito da presença
de Jorge Velho no Piauí. Na "História
Geral do Brasil", o notável Varnhagen afirma: "É menos exato que neste descobrimento (do
Piauí), tivesse parte o paulista Domingos Jorge".
João Pinheiro admite que Jorge Velho tenha
passado, CASUALMENTE, "por êstes longínquos
rincões". Num livro muito curioso ("Aconteceu no Velho São
Paulo") o historiador Raimundo de Menezes assim se refere ao paulista:
"Pertinho de São Paulo, na vila de
Parnaíba, foi que nasceu Domingos Jorge Velho. Seus pais eram dois antigos
paulistas: Simão Jorge e dona Francisca Álvares. Desde meninote sentiu atração
pela selva. E mal lhe apareceu o buço ganhou o mundo. Rumou, de preferência,
para o norte do Brasil. Andou de déu em déu".
O trabalho de João Pinheiro - O descobrimento do Piauí e o documento
de Pereira da Costa muito esclarece a questão. Pereira da Costa, na
"Cronologia", transcreve requerimento da viúva e dos oficiais
comandados por Jorge Velho. Queriam terras invocando serviços prestados ao
Estado - afirma o documento. E dizem que vinte e quatro ou vinte e cinco anos
antes da guerra dos Palmares, Jorge Velho habitava o Piauí. Observe-se que
Jorge Velho foi para Palmares combater os negros rebeldes, a chamado do
governador de Pernambuco, Souto Maior, em mil seiscentos e oitenta e sete.
O requerimento da viúva diz ainda que, saindo
para Palmares, Jorge Velho largou "terras,
povoados, criações e lavouras sem reparo algum para servir Sua Majestade".
Analisando êsse documento, João Pinheiro oferece
estas considerações:
1) em 1662 ou 1663, Jorge Velho saiu de São
Paulo e chegou ao interior do Piauí.
2) estabeleceu-se com fazendas de gado ao
longo do Parnaíba e do Poti.
3) vinte e cinco anos depois deixou bens e
criações e dirigiu-se para Palmares.
4) a ida para Palmares verificou-se em 1687.
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A quem cabe a prioridade do DEVASSAMENTO do
Piauí? A Jorge Velho? A Mafrense? Pelo documento referido, transcrito na
"Cronologia" de Pereira da Costa, cabe a Jorge Velho, pois Mafrense
(Domingos Afonso Sertão), segundo Rocha Pita (citado por Odilon Nunes),
penetrou o Piauí e, 1671. Nessa ocasião se encontrou com Jorge Velho que
"chegara àquela parte pouco tempo antes que o capitão Domingos Afonso a
entrasse" (Rocha Pita - citação de Odilon Nunes).
A documentação a respeito de Mafrense, porém,
é de 1674 e não de 1671. Odilon Nunes escreve 1674 como data da chegada de
Mafrense.
João Pinheiro, apoiado sôbre eruditos
estudiosos do assunto, refuta a prioridade de Jorge Velho, transcrevendo opiniões
de:
- Alencastre (aponta Mafrense como
descobridor do Piauí).
- Rocha Pombo (encara com dúvida a tese da
prioridade de Jorge Velho).
- Barbosa Lima Sobrinho e Basílio de
Magalhães (rejeitaram o documento da "Cronologia" de Pereira da
Costa).
- Pedro Taques (não aponta Jorge Velho entre
os paulistas que houvessem chegado ao Piauí).
Acentua João Pinheiro: "do evidenciado se infere que é completamente
improcedente a asserção de que Domingos Jorge Velho tivesse permanecido em
terras piauienses no tempo a que se refere o documento de Pereira da Costa, que
ali tivesse edificado qualquer povoação ou deixado benfeitorias cujas vagas
recordações, ao menos, perdurassem na memória dos pósteros como o mais
insignificante traço de sua passagem".
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O requerimento da viúva de Jorge Velho afirma
que êste deixou o Piauí para a Guerra dos Palmares. Não é verdade, embora o
ilustrado e seguro Odilon Nunes, pesquisador notável da história do Piauí,
afirme: "Resolve então o Governador
de Pernambuco convidar os paulistas do Piauí para a destruição de Palmares".
João Pinheiro registra patente do Governo
Geral, passada a Jorge Velho, em que se afirma que êle (na empresa de Palmares)
"se abalou da Vila de são Paulo".
O citado João Pinheiro passa a referir-se a Barbosa Lima Sobrinho, que afirma
haver Jorge Velho deixado São Paulo para a guerra de Palmares.
Barbosa Lima Sobrinho escreve o testemunho de
Matias da Cunha, governador geral do Brasil, arcebispo Manuel da Ressurreição,
Câmara Coutinho e outros. Conclui João Pinheiro: "É, portanto, inteiramente fora de dúvida que, para a conquista dos
Palmares, Domingos Jorge Velho partiu da antiga vila de São Paulo, onde se
encontrava, e não do Piauí, conforme pretende o documento de Pereira da Costa".
A respeito do fato, leio em Raimundo de
Menezes: "Estava êle, naquela época
- alturas de 1687 - no seu presídio do Piancó, como assim chamava tais
paragens, fugindo à perseguição que lhe moveram, em Piratininga, os políticos
da família Camargo, quando o procuraram três portadores com mensagens e cartas
do governador da Capitania de Pernambuco. Eram frei André de Anunciação,
carmelita calçado, Cristovão de Mendonça Uchoa, escudeiro das milícias, e o
capitão Belchior Dias Barbosa. O governador João da Cunha Soto-Maior mandava
convidar com uma carta ao dito Mestre de Campo (Jorge Velho) para vir fazer a
guerra dos ditos negros. Os DITOS NEGROS estavam, há quase cinquenta anos,
dando bem o que fazer, atocaiados nos famosos Quilombos dos Palmares,
enfrentando a tudo e a todos, com o maior destemor e a mais afoitada audácia".
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Interessante ler o que escreveu Azevedo
Marques: “êste audaz paulista durante
anos entreteve-se nos sertões do Piauí em correrias contra os selvagens,
fundando cêrca de cinquenta fazendas de criação de gado, das quais vinte e
quatro com setecentos e onze escravos, ainda há pouco tempo pertencentes ao
Estado".
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Engana-se redondamente Azevedo Marques. As
fazendas foram trabalho de Mafrense, que deixou testamento, confiando-as à
administração dos jesuítas "até o
fim do mundo".
As fazendas de Mafrense passaram à Coroa
Portuguêsa quando Pombal expulsou de Portugal e colônias os jesuítas e
confiscou-lhes os bens. Com a Independência do Brasil, denominaram-se Fazendas
Nacionais. Ao tempo da Assembléia Constituinte de 1946, o deputado Adelmar
Rocha apresentou emenda transferindo-as para o patrimônio do Piauí. Aprovada a
proposta, foi esta incorporada ao texto das Disposições Constitucionais
Transitórias da Carta de 1946 - e ainda hoje elas pertencem ao Piauí, depois de
enriquecer muitos espertalhões, nunca punidos.
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No testamento de Domingos Mafrense há esta
confissão: "Declaro que sou senhor e
possuidor da metade das terras, que pedi no Piauhy com o coronel Francisco Dias
d'Ávilla e seus irmãos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de
minha pessoa, e considerável despeza com adjutório dos sócios, e sem eles
defendi também muitos pleitos, que se moveram sobre as ditas terras, ou parte
dela".
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J. M. Pereira de Alencastre (citado por João
Pinheiro) atestou: "... Domingos
Afonso Sertão (Mafrense) e seu irmão que sempre serão tidos como únicos
descobridores associando a seus nomes os de Francisco Dias de Ávila e Bernardo
Pereira Gago, que, poderosamente, os auxiliaram nas despesas da conquista,
sendo, também, dos primeiros a gozar de seus frutos".
TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 30 dez.
1971.