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sábado, 25 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (190)

"GEOGRAFIA ILUSTRADA", edição dedicada ao Piauí, recentemente vendida, estampa o seguinte: "Em meados do século XVII os rebanhos começaram a se distanciar do rio São Francisco. A partir do Recife e de Salvador, os sertanistas convergiram para a região do médio Parnaíba, entre o Gurguéia e o Poti. Entre êles, dois nomes se destacam: Domingos Afonso Mafrense, rendeiro da Casa da Tôrre de Garcia d'Ávila, e o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho. Deixando o São Francisco, desceram os rios Gurguéia e Poti, percorrendo a região que vai do Gurguéia ao Poti".

Pela indicação transcrita, entende-se que o português Mafrense e o paulista Jorge Velho andavam juntos, em busca das terras piauienses.

Muito se tem discutido a respeito da presença de Jorge Velho no Piauí. Na "História Geral do Brasil", o notável Varnhagen afirma: "É menos exato que neste descobrimento (do Piauí), tivesse parte o paulista Domingos Jorge".

João Pinheiro admite que Jorge Velho tenha passado, CASUALMENTE, "por êstes longínquos rincões". Num livro muito curioso ("Aconteceu no Velho São Paulo") o historiador Raimundo de Menezes assim se refere ao paulista: "Pertinho de São Paulo, na vila de Parnaíba, foi que nasceu Domingos Jorge Velho. Seus pais eram dois antigos paulistas: Simão Jorge e dona Francisca Álvares. Desde meninote sentiu atração pela selva. E mal lhe apareceu o buço ganhou o mundo. Rumou, de preferência, para o norte do Brasil. Andou de déu em déu".

O trabalho de João Pinheiro - O descobrimento do Piauí e o documento de Pereira da Costa muito esclarece a questão. Pereira da Costa, na "Cronologia", transcreve requerimento da viúva e dos oficiais comandados por Jorge Velho. Queriam terras invocando serviços prestados ao Estado - afirma o documento. E dizem que vinte e quatro ou vinte e cinco anos antes da guerra dos Palmares, Jorge Velho habitava o Piauí. Observe-se que Jorge Velho foi para Palmares combater os negros rebeldes, a chamado do governador de Pernambuco, Souto Maior, em mil seiscentos e oitenta e sete.

O requerimento da viúva diz ainda que, saindo para Palmares, Jorge Velho largou "terras, povoados, criações e lavouras sem reparo algum para servir Sua Majestade".

Analisando êsse documento, João Pinheiro oferece estas considerações:

1) em 1662 ou 1663, Jorge Velho saiu de São Paulo e chegou ao interior do Piauí.

2) estabeleceu-se com fazendas de gado ao longo do Parnaíba e do Poti.

3) vinte e cinco anos depois deixou bens e criações e dirigiu-se para Palmares.

4) a ida para Palmares verificou-se em 1687.

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A quem cabe a prioridade do DEVASSAMENTO do Piauí? A Jorge Velho? A Mafrense? Pelo documento referido, transcrito na "Cronologia" de Pereira da Costa, cabe a Jorge Velho, pois Mafrense (Domingos Afonso Sertão), segundo Rocha Pita (citado por Odilon Nunes), penetrou o Piauí e, 1671. Nessa ocasião se encontrou com Jorge Velho que "chegara àquela parte pouco tempo antes que o capitão Domingos Afonso a entrasse" (Rocha Pita - citação de Odilon Nunes).

A documentação a respeito de Mafrense, porém, é de 1674 e não de 1671. Odilon Nunes escreve 1674 como data da chegada de Mafrense.

João Pinheiro, apoiado sôbre eruditos estudiosos do assunto, refuta a prioridade de Jorge Velho, transcrevendo opiniões de:

- Alencastre (aponta Mafrense como descobridor do Piauí).

- Rocha Pombo (encara com dúvida a tese da prioridade de Jorge Velho).

- Barbosa Lima Sobrinho e Basílio de Magalhães (rejeitaram o documento da "Cronologia" de Pereira da Costa).

- Pedro Taques (não aponta Jorge Velho entre os paulistas que houvessem chegado ao Piauí).

Acentua João Pinheiro: "do evidenciado se infere que é completamente improcedente a asserção de que Domingos Jorge Velho tivesse permanecido em terras piauienses no tempo a que se refere o documento de Pereira da Costa, que ali tivesse edificado qualquer povoação ou deixado benfeitorias cujas vagas recordações, ao menos, perdurassem na memória dos pósteros como o mais insignificante traço de sua passagem".

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O requerimento da viúva de Jorge Velho afirma que êste deixou o Piauí para a Guerra dos Palmares. Não é verdade, embora o ilustrado e seguro Odilon Nunes, pesquisador notável da história do Piauí, afirme: "Resolve então o Governador de Pernambuco convidar os paulistas do Piauí para a destruição de Palmares".

João Pinheiro registra patente do Governo Geral, passada a Jorge Velho, em que se afirma que êle (na empresa de Palmares) "se abalou da Vila de são Paulo". O citado João Pinheiro passa a referir-se a Barbosa Lima Sobrinho, que afirma haver Jorge Velho deixado São Paulo para a guerra de Palmares.

Barbosa Lima Sobrinho escreve o testemunho de Matias da Cunha, governador geral do Brasil, arcebispo Manuel da Ressurreição, Câmara Coutinho e outros. Conclui João Pinheiro: "É, portanto, inteiramente fora de dúvida que, para a conquista dos Palmares, Domingos Jorge Velho partiu da antiga vila de São Paulo, onde se encontrava, e não do Piauí, conforme pretende o documento de Pereira da Costa".

A respeito do fato, leio em Raimundo de Menezes: "Estava êle, naquela época - alturas de 1687 - no seu presídio do Piancó, como assim chamava tais paragens, fugindo à perseguição que lhe moveram, em Piratininga, os políticos da família Camargo, quando o procuraram três portadores com mensagens e cartas do governador da Capitania de Pernambuco. Eram frei André de Anunciação, carmelita calçado, Cristovão de Mendonça Uchoa, escudeiro das milícias, e o capitão Belchior Dias Barbosa. O governador João da Cunha Soto-Maior mandava convidar com uma carta ao dito Mestre de Campo (Jorge Velho) para vir fazer a guerra dos ditos negros. Os DITOS NEGROS estavam, há quase cinquenta anos, dando bem o que fazer, atocaiados nos famosos Quilombos dos Palmares, enfrentando a tudo e a todos, com o maior destemor e a mais afoitada audácia".

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Interessante ler o que escreveu Azevedo Marques: “êste audaz paulista durante anos entreteve-se nos sertões do Piauí em correrias contra os selvagens, fundando cêrca de cinquenta fazendas de criação de gado, das quais vinte e quatro com setecentos e onze escravos, ainda há pouco tempo pertencentes ao Estado".

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Engana-se redondamente Azevedo Marques. As fazendas foram trabalho de Mafrense, que deixou testamento, confiando-as à administração dos jesuítas "até o fim do mundo".

As fazendas de Mafrense passaram à Coroa Portuguêsa quando Pombal expulsou de Portugal e colônias os jesuítas e confiscou-lhes os bens. Com a Independência do Brasil, denominaram-se Fazendas Nacionais. Ao tempo da Assembléia Constituinte de 1946, o deputado Adelmar Rocha apresentou emenda transferindo-as para o patrimônio do Piauí. Aprovada a proposta, foi esta incorporada ao texto das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1946 - e ainda hoje elas pertencem ao Piauí, depois de enriquecer muitos espertalhões, nunca punidos.

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No testamento de Domingos Mafrense há esta confissão: "Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras, que pedi no Piauhy com o coronel Francisco Dias d'Ávilla e seus irmãos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha pessoa, e considerável despeza com adjutório dos sócios, e sem eles defendi também muitos pleitos, que se moveram sobre as ditas terras, ou parte dela".

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J. M. Pereira de Alencastre (citado por João Pinheiro) atestou: "... Domingos Afonso Sertão (Mafrense) e seu irmão que sempre serão tidos como únicos descobridores associando a seus nomes os de Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago, que, poderosamente, os auxiliaram nas despesas da conquista, sendo, também, dos primeiros a gozar de seus frutos".



TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 30 dez. 1971.

sábado, 18 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (189)

CARTA recebida, com data de 23-11-71: "Prezado Ary. Ouço com maior atenção e vivo interêsse o seu programa, tôdas as vezes que vai ao ar, pela Rádio Difusora. Suas criticas constituem magnífica prova do seu valor como jornalista e intelectual. São equilibradas e merecem crédito porque são apresentadas com seriedade, inteligência, conhecimento e elevado espírito de justiça. Meus parabéns por tudo que tem feito pelo Piauí. Corre, na Comissão de enquadramento, processo de intêresse de três funcionárias do IAPEP que desejam ser enquadradas no cargo de Fiscal de Previdência. Soube, através de pessoa categorizada, do seu criterioso parecer no processo. Colocou as coisas nos seus devidos lugares, reconhecendo o direito de uma das postulantes. As outras duas, sem a menor condição. Nunca exerceram atividades relacionadas com as tarefas especificas de Fiscal de Previdência. A primeira, cujo direito você reconheceu, também não. Tem a seu favor a Chefia do Serviço que autoriza os trabalhos específicos do Fiscal de Previdência. Por certo você saiu com a conclusão de que quem pode muito pode pouco. Respeitados os aspectos jurídicos. Não desconhece você que as atribuições específicas constantes de processos de enquadramento dos fiscais da autarquia são as seguintes: promover fiscalização, junto aos órgãos arrecadadores das contribuições devidas ao IAPEP, sôbre a regularidade do processamento dessas atribuições e do seu recolhimento na forma das disposições legais e regulamentares específicas, orientando-os nesse processamento ou notificando quando incorrerem em infrações; faz(er) levantamento de débito proveniente de contribuições devidas e não recolhidas; executa outras tarefas semelhantes. Tarefas especificadas nos questionários de enquadramento dos Fiscais do IAPEP. O processo que tramita na Comissão não foi instruído com cópia de trabalho específico das tarefas de Fiscal de Previdência. Não, meu caro. Também não acredito que a atual Comissão de Enquadramento, composta de bacharéis dos melhores, onde se destaca com brilhantismo, ao lado dos demais membros não menos brilhantes, José Torquato, filho do meu saudoso coronel Torquato, não entenda que êsse enquadramento pretendido será a derrocada do Direito. Na certa você já deve estar imaginando um mundo de cousas. Perguntando a si mesmo: que é que o velho Florêncio tem com enquadramento de Fiscal de Previdência do IAPEP. Dou as razões. Meu neto, filho do Joel, foi aprovado no concurso realizado pelo instituto para preenchimento de duas vagas do cargo de Fiscal.  O vibrante órgão de imprensa local "O Liberal" denunciou que as duas vagas estavam destinadas a pessoas vinculadas ao govêrno da época. O governador Clímaco, tomando conhecimento da denúncia, fundada ou infundada, não discutiu, mandou anular o concurso. Foi aplaudido o velho Joaqueira. Tudo esquecido, até que surge o governador Alberto Silva criando mais uma vaga de Fiscal de Previdência. Os candidatos aprovados no curso anterior exultam de contentamento pensando que seria realizado nôvo concurso. Nada disso. Foi criado o lugar para acomodar as três candidatas pleiteantes ao cargo. Daí as razões de minha carta. Por tudo isso é que pergunto: está correta a atitude do presidente do IAPEP orientando o govêrno na criação de mais um lugar desnecessário? Está correta a atitude da Comissão de Enquadramento que pretende reconhecer um direito inexistente? Será que o governador Alberto Silva aceitará essa orientação incorreta do presidente e da Comissão? Pergunto ainda: será que "O Liberal", vigilante nos acontecimentos do IAPEP, ainda não conseguiu desvendar o ministério para denunciar essa situação que merece as atenções e reclama um corretivo urgente? Por que não promovem um nôvo concurso, para dar oportunidade à juventude estudiosa? Caso seja concretizado o enquadramento cabe uma ação popular na Justiça? O cansaço da velhice não permite que prossiga as minhas indagações. Deixo a você tudo isso que foi escrito, aguardando os seus esclarecimentos e críticas. Gostei da leitura da carta, no programa de ontem, do professor Benedito Lima. Lembrou a figura do meu velho amigo Arimathéa Tito, de saudosa memória. Devido aos meus achaques de velho não tenho descido à cidade. Apareça para um cafezinho. Continuo morando na mesma casa da rua Tiradentes. Um abraço fraterno do colega e admirador”. a) Professor Florêncio da Cunha Castelo Branco.

OBSERVAÇÃO. Inicialmente, grato pelo incentivo que me oferece o missivista. Passo ao assunto. O decreto 1.062 de 1970, admitiu três modalidades de enquadramento, praticamente reduzidas a duas, definindo-as nos parágrafos 1º e 2º do artigo 6º. A primeira é o enquadramento direto, simples, caracterizado pelo ajustamento de cargos e funções aos grupos e níveis correspondentes, com o respectivo ocupante, consideradas a investidura e a continuidade do exercício. O enquadramento genérico e o específico afinam por outro caminho. São novos tipos de ajustamento. Não individualizam. Antes, especificam critérios e generalizam. Aqui serão indicados os grupos e níveis correspondentes para ajustamento dos ocupantes dos cargos e funções, com obediência aos critérios da experiência, da complexidade de tarefas, da aptidão, dos deveres e das responsabilidades do funcionário. Considero que o objetivo mais alto da lei, no parágrafo 2º, do artigo 5º, foi o de assegurar à administração maior rendimento e premiar o servidor que desempenhe tarefas com os critérios exigidos para o respectivo ajustamento. Não se trata de readaptação, pois esta se aplica ao servidor desviado de suas funções. Trata-se de ajustamento, para que se aproveite a experiência, a competência, a aptidão do servidor. E note-se que a norma é imperativa. Diz o decreto: serão ajustados. Caso notório do futuro do presente em lugar do imperativo verbal, como nos mandamentos divinos: não matarás. O caso concreto foi êste: três servidores do IAPEP invocaram o decreto citado, juntaram documentação de sua vida funcional, e pleitearam enquadramento como Fiscal da Previdência. Os processos vieram a mim, para parecer. Entenda-se: para parecer nada decide. Examinei a questão nos seus aspectos jurídicos e concluí: se essas servidoras desempenharam ou desempenham funções e nestas revelaram experiência, aptidão, responsabilidade, e se essas funções têm correlação com as funções de Fiscal de Previdência, então estavam as três amparadas pelo artigo 6º (parágrafo 2º) do decreto citado. Caso não se verifique a correlação, falecia-lhes o amparo da lei. Acrescentei que a correlação deveria ser objeto de estudo da Comissão de Enquadramento. Essas funcionárias juntaram ao processo documentos do exercício de várias funções. A Comissão decida se essas funções lhes conferem os critérios exigidos para o ajustamento pleiteado. Eis aí o meu fraco entendimento. Outros entenderão melhor do que eu na rabulice exposta neste caderno. PASSO Às respostas pedidas pelo missivista: 1) penso que o IAPEP precisa de mais fiscais. Atualmente, em exercício, só existe um. Não enxergo incorreção na atitude do ilustre presidente do IAPEP em pedir a criação de mais um cargo de fiscal. 2) A Comissão deve examinar o caso com tôda a lisura, e os seus membros são capazes dessa lisura. Se as funcionárias, por através da documentação apresentada, estão aptas para o exercício da função de fiscal, têm direito ao respectivo enquadramento. Caso contrário, evidenciar-se-á favoritismo. 3) Não creio que o governador Alberto Silva chancele incorreções. 4) Quanto ao jornal "O Liberal", nada posso dizer. Êsse jornal possui direção - e à direção cabem as responsabilidades das ações e omissões. Digo mais: tal órgão de imprensa muito me hostilizou, injustamente. Padeci com humildade as suas ofensas gratuitas, sem que me deslembrasse da grandeza de Deus. 5) Caso as três funcionárias não tenham direito ao que pleiteiam, o govêrno, certamente, promoverá concurso para preenchimento dos lugares vagos de Fiscal da Previdência. 6) Se as três funcionárias não preencheram os requisitos para o enquadramento pleiteado, se se fizer o enquadramento ao arrepio dos critérios legais estabelecidos, cabe ação popular, regulamentada pela Lei Federal 4717, de 29-6-65. Ação promovida por quem seja cidadão, isto é, eleitor, ação que se fundamente essencialmente no direito político do cidadão. Ação para invalidar ato legítimo e lesivo ao patrimônio público, danoso aos bens ou interêsses da coletividade. A lesividade abrange o patrimônio material, histórico, espiritual, estético, moral.



TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 15 dez. 1971.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (188)

EXISTEM conceitos muitos a respeito de literatura. Estou, porém, com Sachet: "Daí ser evidente que só houve Literatura Brasileira quando ela pôde localizar-se dentro de um espaço brasileiro. Num determinado tempo historicamente brasileiro. É produto do espírito de um homem brasileiro”.

De conformidade com êsse critério, deve fazer-se referência a uma literatura piauiense? Uma literatura do homem piauiense? Num espaço geograficamente piauiense? Num tempo historicamente piauiense?

Quando falo de homem piauiense não faço referência ao nascido aqui. Refiro-me ao que se integrou na paisagem física humana, social, espiritual do Piauí. Higino Cunha, nascido no Maranhão, é piauiense, da mesma forma que Celso Barros Coelho. Veja-se: Ovídio Saraiva Carvalho e Silva, nascido no Piauí, é bem português, de personalidade portuguêsa, de produção literária portuguêsa.

Não se nega a existência do espaço piauiense, com certas características próprias. Existe igualmente o tempo historicamente catarinense? O Piauí participou do tempo histórico em literatura? Creio que não, embora se possam excetuar alguns casos dessa participação. A partir da próxima terça-feira, examinarei estas questões, justamente no instante em que o governo tenciona reeditar obras literárias piauienses. Os encarregados do trabalho terão aqui roteiro humilde, modesto, escrito, porém, com a vontade de acertar, de ser útil.

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Enquanto se organiza o Natal dos Pobres, natal da pobreza, reconhecendo-se a diferenciação da comunidade em ricos e pobres, leio nota da imprensa: "É bom salientar que esta reformar da Assembléia prevê, entre outras coisas, uma central de ar condicionado para a Casa, bem como um plenário de vidro". Piauí das mil e uma noites. Mais fabuloso do que o xá da Pérsia. Em São Paulo, a Revolução abriu inquérito (govêrno Castelo Branco) para conhecer os gastos com a reforma física da Assembléia. Apareceu cousa cabeluda em excesso. Mal cheirosa. Mobiliário de milhões. Alguns deputados cassados. Não creio que Sebastião Leal e Murilo Resende pretendiam fazer do prédio da Assembléia palácio de luxúria. Bom que se lembrem: aquilo tem denominação de Casa do Povo - e em razão disto se distinguirá pela sobriedade, pela simplicidade. De luxo será a consciência cívica dos representantes do povo.

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Para o meu parente Murilo Resende (acho que tivemos avós irmãs) ler onde estiver:

"Um estádio recém-concluído, com capacidade para vinte mil pessoas, está em leilão em São José dos Campos, São Paulo. Avaliado judicialmente em Cr$ 4.558.937, vale quase oito milhões. Motivo da fofoca: a diretoria do Esporte Clube São José, que construiu o Estádio Martins Pereira, mais conhecido por FORMIGÃO está devendo dois milhões vinte e três mil duzentos e setenta e dois cruzeiros e setenta e seis centavos a bancos, fornecedores e à firma construtora, e não tem condições de saldar essa dívida. A luz do estádio já foi cortada por falta de pagamento" (Revista O CRUZEIRO - 17 de novembro de 1971 - página 34).

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A reportagem publica o retrato do presidente da construtora do FORMIGÃO, com esta legenda: "casa penhorada". Copio da página referida: "Tudo deveria correr bem, mas falharam as precisões: a população não correspondeu à expectativa na hora de comprar os títulos. Inaugurado a 15 de março de 1971, o estádio, já no dia de sua inauguração, teve um prejuízo de cem mil cruzeiros. Do quadrangular que reuniu, no FORMIGÃO, o Corinthians, o Palmeiras, o Atlético e o Internacional, o clube ainda deve vinte e cinco mil cruzeiros ao Corinthians".

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Mais um trecho para ajudar a ilustrada inteligência do bom Murilo: “Depois de ter participado de várias campanhas como a do CHAPÉU DE PALHA, em que os diretores do clube iam, de casa em casa, tentando vender um título, o atual presidente, Argemiro Parizoto de Sousa, sem se desesperar, procura outras saídas. Falou-se em que as rádios iam irradiar apelos de Rivelino, Pelé, Gerson, Leivinha e outros jogadores para que o povo colaborasse com o clube, mas tudo ficou por isso mesmo. Contas bancárias, entretanto, vão ser abertas para a campanha ABRA O SEU CORAÇÃO E AJUDE O FORMIGÃO".

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Finalmente, sustenta a revista: "A Portuguêsa prontificou-se também a colaborar mas o jôgo realizado contra o time da casa rendeu apenas dezoito milhões. O Corinthians também vai jogar mas não há esperança de que a renda seja muito maior. O drama portanto continua, esperando-se que êle termine antes do próprio FORMIGÃO".

Na cidade paulista, como se leu, houve a campanha do "Chapéu de Palha" para salvar o FORMIGÃO. Aqui será a do "Chapéu de Couro" para salvar o Albertão. Aqui o SLOGAN poderá ser repetido: "Abra o seu coração e ajude o Albertão".

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NA DIREÇÃO da Caixa Econômica do Piauí encontra-se o dr. João Paulo Mendes Fernandes Neto. Outro dia ouvi entrevista que êsse alto funcionário concedeu a José Lopes dos Santos, uma espécie de parada entrevista. Gostei da fala de João Paulo. Disse ao que vinha. Resolveu intenções e objetivos de desenvolver operações e de cooperar com a coletividade. Expressou-se o entrevistado com elegância, linguagem correta. Deixou-me impressão de ser homem de inteligência cultivada, educado. Pois bem. Antes da chegada de João Paulo ao Piauí, a Caixa Econômica trombeteou a inauguração de empréstimo, como nos bancos, pagamento em prestações mensais. Afluência de freguesia. Muita gente queria empréstimo. O cliente recebia dois formulários, preenchia-os. Tocava depois em busca de avalista. Mais dois formulários para preenchimento pelo avalista. Trabalheira. Exigência de certidões nas quais as repartições testemunhavam a renda mensal do pretendente. Abonação de firmas nos bancos do freguês e do avalista. E mais; depósito de, no mínimo, trinta cruzeiros, pelo pretendente, na Caixa. Pasmem, agora! Depois de tudo isto, o pretendente recebia o aviso: "Voltem no dia tal". Dia tal, o pretendente voltava aos gabinetes da sumidade da humilhação, e ouvia: "Não é possível, porque são ruins as informações sôbre a sua pessoa". Terra admirável este pobre Piauí, em que quase todos se estimam, excetuados alguns que se encantam e se enriquecem de atitudes para a humilhação dos semelhantes. Sabem os leitores a razão pela qual o sadismo negava o empréstimo ao humilhado pretendente? Porque o pretendente havia atrasado o pagamento de contas. Quem não se atrasa na liquidação de dívidas? Estão aí não sei quantos bancos, quantos estabelecimentos comerciais que não me deixam mentir. E por que a Caixa não efetuava sindicância antes de impor tanto trabalho ao pretendente? Antes de exigir depósito? É grande, grandíssima, a diferença entre caloteiro e o que atrasa pagamento de uma dívida, numa terra de funcionários públicos. O principal atrasador de pagamento em Teresina é o govêrno, desde que me entendo como servidor público. Muitas pessoas foram humilhadas pelos raríssimos funcionários desumanos da Caixa Econômica do Piauí. Rabiscadores de informações humilhativas. Servidores (raros) sem alma, cuja felicidade está em maltratações da personalidade dos semelhantes. Creio que João Paulo Mendes Fernandes Neto revogará tais processos - processos que colocam mal a Caixa Econômica no conceito da coletividade, porque os humilhados passarão a querer mal a essa instituição e contagiarão outros para a malquerença.   



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 19-20 dez. 1971.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (187)

DE LUIS Pereira da Silva: "Na história das línguas românicas fala-se muito na palavra LÁCIO. Eu lhe pergunto: é uma região, estado ou cidade e que papel tão importante exerceu na criação de nosso português? Por quê?RESPOSTA. Lácio era um território muito limitado da margem esquerda do rio Fibre. Dialeto falado pelos habitantes: o latim. Nesse território, onde se elevam as sete colinas, foi fundada Roma. Pouco a pouco, de conquista em conquista, Roma estende o seu domínio por grande parte do mundo conhecido. E o latim torna-se a língua universal do célebre Império Romano. A extraordinária expansão romana levou o latim a muitas áreas, nas quais os povos dominados deturpavam a fala romana (latim vulgar) e disso resultou a transformação do latim em outras falas usuais, conhecidas como línguas romanicas (português, inclusive).

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MURILO Resende, para justificar o Albertão (quinhentos mil contos por um terreno na Tabuleta) afirmou a Lopes dos Santos que Teresina terá, em 1980, mais de quinhentos mil habitantes. Murilo, certamente, vai proibir o uso da pílula e mandar buscar magotes de indianos, que residirão nos pombais do Parque Piauí. Sabe Murilo que a taxa de crescimento demográfico no Brasil foi de três por cento entre 1950 e 1960, quando não se fazia uso da pílula. Murilo acha que população grande corresponde a progresso. Nunca dos nuncas. Eis pedaços do ensinamento de Simonsen: "A explosão demográfica pode ser desejada por um Govêrno cuja principal preocupação não seja a de melhorar os padrões de vida do povo, mas a de fortalecer os quadros da sua infantaria". E mais: “Entretanto a aritmética muda, quando no voltamos para as nações subdesenvolvidas, essencialmente preocupadas em melhorar sua renda per capita, mas freadas pelo pêso da explosão demográfica". Mais ainda: "Quatro razões explicam porque o crescimento demográfico acelerado contribui negativamente para o aumento da renda per capita: o efeito aritmético, o efeito infra-estrutura social, o efeito pirâmide-etária e o efeito emprêgo". Caso Murilo queira, passe aqui pela redação (de tarde) para uns dedos-de-prosa a respeito dessas razões. Veja logo o efeito pirâmide: "Um crescimento demográfico muito rápido modifica a composição da população por idades, tornando percentualmente muito elevada a faixa das crianças e jovens aquém da idade de trabalho. O censo de 1960 revelou que quarenta e dois por cento da população brasileira da época não chegava aos quinze anos".

Há imperiosa necessidade de uma política populacional. O próprio Papa aceitou a planificação familiar pelo método Ogino-Knaus. E o que mais se vende hoje, no mundo, é pílula anticoncepcional.

Murilo deseja o dôbro de gente em Teresina para 1980. Volta-se, assim, contra o Programa Estratégico de Desenvolvimento, elaborado pelo Ministro do Planejamento - "um grande passa para definir a política demográfica brasileira, levando em consideração a situação atualmente existente e as perspectivas do crescimento populacional".

Leia-se Rubens Vaz da Costa: "Embora as proposições ainda sejam bastante cautelosas, face aos graves problemas de crescimento da população, essa iniciativa do Govêrno Federal - que pela primeira vez traça uma política demográfica RESTRITIVA - é bem vinda, e de há muito já deveria ter sido tomada".

Simonsen arremata: "De fato, qualquer política de contrôle populacional tem que partir do postulado básico do respeito às liberdades individuais. Cada família deve ter o direito de escolher livremente a dimensão que desejar. Êsse direito, todavia, só se poderá exercer na sua plenitude quando a população tiver acesso a tôdas as opções, uma das quais é a do uso dos anticoncepcionais modernos".

Em verdade, Murilo tem razão: é preciso parir muito menino para lotar o Albertão no ano da graça de mil novecentos e oitenta. O Albertão vai enricar alguns e empobrecer um povo. Já enricou um deputado (quinhentos mil contos-terreno) e uma firma de Belo Horizonte, que abiscoitou seiscentos e quarenta mil contos pelo projeto do referido.

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KARLA pergunta: "Que caracteriza um porto organizado, seja marítimo ou fluvial?” RESPOSTA. Pôrto, ensinam as enciclopédias, é abrigo (costeiro ou fluvial), natural ou artificial, próprio para receber navios. Os Aliados, na Segunda Grande Guerra, desembarcaram na França (1944) por meio de dois portos artificiais. O Pôrto militar (organizado) deve estar protegido contra ataques, oferecer bacia segura para os navios ancorados, possuir arsenal provido de docas, oficinas mecânicas e armazéns de abastecimentos. O pôrto de comércio terá docas e entre postos gerais, e muitas bacias. Será dotado de tôdas as facilidades para carga e descarga de mercadorias. Alguns dos principais portos do mundo: Roterdã (Holanda), Londres e Liverpool (Inglaterra), Antuérpia (Bélgica), Hamburgo (Alemanha), Marselha (França), Nova Iorque, o mais importante, São Francisco e Filadélfia (EEUU), Buenos Aires (Argentina), Xangai (China), Santos e Guanabara (Brasil).

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NINGUÉM pode esconder: a ARENA piauiense semelha notável saco-de-gatos. Atritos em muitos lugares do interior. As lideranças vivem desprestigiadas pelo governador Alberto Silva, mudas, retraídas. Um senador rompido: Fausto Castelo Branco. Um ex-governador confinado: João Clímaco de Almeida. Outro senador, Helvídio Nunes, desprezado. Não se entendem bem o governador e o prefeito da capital. Homero Castelo Branco atesta cobras e lagartos do secretário Pádua Ramos. O líder do govêrno na Assembléia desmente o secretário de Fazenda, e rebaixa-o, quando afirma que não mantém audiência com secretário, sim com o governador. E anula a autoridade de Rupert Macieira (aliás, bom secretário), quando derriba um colega em Piracuruca. O líder da ARENA, José Raimundo, vai acusado pelo deputado arenista Wilson Brandão de corrupção. José Raimundo defende-se. Amabilidades são trocadas no parlamento piauiense:

José Raimundo - Vossa Excelência tem cultura enlatada.

Wilson Brandão - A cabeça de Vossa Excelência é muito grande, mas vazia.

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Que cousas! Dessas desagregações o MDB vai enchendo o papo. A ARENA vive em desassossego justamente porque se menosprezaram as lideranças, os comandos reais e efetivos. Partido desagregado é partido sem atuação. Os partidos são o elo indispensável entre o povo e a estrutura representativa do govêrno. São os partidos que organizam o povo heterogêneo, popularizando ideias em tôrno das quais são organizados os programas de govêrno.



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 29 dez. 1971.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (186)

PRIMOROSA a edição 78 da Revista das Academias de Letras, órgão oficial da Federação das Academias de Letras do Brasil. Entre outros, escrevem Malba Tahan, Cristino Castelo Branco, Câmara Cascudo, Povina Cavalcante, Artur Tôrres, Félix Aires. Há, na Revista, esta referência a Oliveira Neto: "Oliveira Neto, poeta de ÁRIAS SONOROSAS, envia-nos ÚLTIMAS ÁRIAS, livro de cento e cinco páginas de poemas neoparnaseanos. Os críticos locais apontam o sr. Oliveira Neto como um dos melhores poetas piauienses. ÚLTIMAS ÁRIAS justifica plenamente o conceito conquistado pelo autor com obras precedentes. Poeta de muito ritmo, boas imagens e símbolos, muita musicalidade, o sr. Oliveira Neto, tanto do ponto de vista artesanal e técnico, como pela inspiração, pode ser arrolado entre os melhores poetas da escola a que se filia".

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PUNLICAÇÃO recebida: "Contacto", edição nº 11. Como sempre bem redigido, assuntos variados. Inteligente orientação de G. R. Santos.

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NOTÍCIA do jornal "O GLOBO", da Guanabara: "A GUERRA DO FIDIÉ e VÁRIA FORTUNA DE UM SOLDADO PORTUGUÊS, de Abdias Neves, serão os primeiros livros que o Instituto Nacional do Livro co-editará na Coleção Sesquicentenário da Independência. As obras foram sugeridas pelo Govêrno do Piauí e narram episódios das lutas pela Independência no Estado pelas tropas do Comandante José da Cunha Fidié. A Diretora do Instituto, Maria Alice Barroso, disse que espera a contribuição de outros Estados para que a coleção que será lançada em 1972". OBSERVAÇÕES. Êste Piauí, meu Deus, só a cacete. Realmente "A Guerra de Fidié" pertence a Abdias Neves. Já li o livro. Bem feito. Abundantes notícias das lutas pela Independência no Piauí. Convém perguntar se obteve autorização dos herdeiros de Abdias para que a obra seja editorada. Passo ao segundo livro - "Vária Fortuna de um Soldado Português". Um volume de requerimentos, petições que Fidié dirigiu à monarquia portuguesa reclamando direitos. Quase nada a respeito da história da Independência no Piauí. Ligeiras referências ao movimento em Parnaíba e à Batalha do Jenipapo. Petições e mais petições. Só. Nenhum interêsse histórico, cívico, cultural despertam os escritos de Fidié, em que o sargento-mor português, depois brigadeiro, reclama contra injustiças padecidas em Portugal. O govêrno Leônidas Melo fêz uma edição desses requerimentos, com um prefácio de Hermínio Conde, o saudoso criador da "Tragédia Ocular de Machado de Assis". Da publicação se salva o prefácio - ainda que com alguns pecados de sentimentalismo. Por obséquio, eminente governador Alberto Silva: mande sustar a reedição das petições de Fidié. E circunstância interessante: Fidié, soldado português, combatente contra a Independência, é mais conhecido do que os comandantes das tropas piauienses e cearenses do Jenipapo, como Chave e Alecrim, por exemplo.

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CONFRATERNZAÇÃO no IAPEP: Natal. Presidência e servidores testemunhando alegrias espirituais e estreitando amizades.

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NA LEI que criou a Fundação de Assistência Geral aos Desportos do Piauí (Lei do Albertão) há este artigo : "A FAGEP terá por objetivo o desenvolvimento dos desportos em geral, através da construção, administração e manutenção de estádios e ginásios, na capital e no interior do Estado, diretamente ou em convênio com os municípios". OBSERVAÇÃO. A febre de estádios no país começou faz alguns anos. Os governadores queriam popularidade. Surgiu o Maracanã, do Rio, por necessidade: campeonato mundial de futebol de 1950. Depois, o desejo de imortalidade dos governantes. Primeiro, parece que Aluisio Alves, governador do Rio Grande do Norte, Prefeito de Natal, irmão de Aluísio. E apareceu o Aluisão. Enormidade. Elefante. Trombetas. Obras iniciadas. Aluísio deixa o governo e deixa a herança: o Aluisão inacabado. Veio o governo de monsenhor Gurgel. E lá está o Aluisão, desafiador. O esqueleto do Aluisão. No Piauí a lei está dizendo que a FAGEP desenvolverá o esporte com a construção de estádios na capital e no interior do Estado. Por amor de Deus, governador Alberto Silva, e Vossa Excelência é criatura de Deus - não construa estádios no interior do Estado. Houve no Piauí febre dêsses estádios. Encontram-se abandonados. Habitados de cabras e cabritos. Há um em Demerval Lobão. Um em Barras. Há outros. Todos no mais íntegro abandono. O Albertão, na capital, será pêso-morto nos magros cofres públicos. Quinhentos mil contos por um terreno na Tabuleta - e a transação envolve um deputado federal. Seiscentos e quarenta mil contos pelo projeto do dito cujo. Sessenta mil pessoas a lotação, quando a Guanabara, com população metropolitana de sete milhões, tem o Maracanã para cento e cinquenta mil pessoas. Teresina é habitada e duzentos e trinta mil almas, mais ou menos. Desta importância se retirem os ruricolas, os anciãos, os mendigos, os cegos, as criancinhas, os que antipatizam com futebol. Que fica? São muitos e intensos e profundos os problemas do Piauí. Que delírio de grandeza representará o Albertão? Podemos sustentar, manter tal monstruosidade? Fica a resposta com a sensatez dos homens.       


In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 24 dez. 1971.  

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (185)

Muito oportuna a "Síntese Bibliográfica da Literatura Piauiense", esfôrço de J. Miguel de Matos. Mostra o autor, inicialmente, as razões da pobreza literária desta terra. Oferece opinião própria e transcreve também trechos de estudos de João Pinheiro, Tito Filho, Martins Napoleão, Cristino Castelo Branco. De mim, como testemunho de bondade, diz J. Miguel de Matos: "Estudioso dos problemas literários do Piauí, como a maior voz no campo cultural da atualidade, trinta e um anos depois do grito de alerta de João Pinheiro, mostra, em trabalho publicado na revista DESTAQUE que a paisagem não mudou em quase nada, pelo menos em relação ao escritor piauiense, na sua via crucis de publicar e vender o livro que escreve acossado por dificuldades de toda ordem". Em seguida Miguel de Matos transcreve trecho de trabalho meu, assim redigido: "Grave é o problema da publicação do livro no Piauí. Concebe-se a obra, matuta-se nela, no seu assunto, no seu fundamento, no seu desenvolvimento, no seu acabamento - e aí se fica, porque o intelectual piauiense, isolado dos movimentos literários, desconhecido junto às editôras, sem recursos financeiros, não pode publicar a obra, salvo com o sacrifício de raquíticas economias dos pés-de-meia de contas bancárias populares, ou com ônus dos empréstimos que o angustiarão por muito tempo".

Diz Miguel: "Registro mais, aqui, dois depoimentos que completam o conceito-denúncia de Tito Filho". E transcreve considerações dessas cabeças extraordinárias, Martins Napoleão e Cristino Castelo Branco.

Críticos nacionais têm dito que o Piauí possui notáveis homens de saber, ignorados do resto do Brasil. Leio em Afonso Costa: "Abolida a monarquia, Estados há, como havia província, que continuam a viver quase estranhos ao organismo nacional. Êsse isolamento, no regime republicano, é ainda maior do que no velho sistema monárquico, pela pseudo-autonomia estadual de que fatuamente se orgulham, e se faz sentir, com mais precisão, no domínio das letras, embora cada um dêsses Estados, como Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia e Pernambuco, possa apresentar, em vários ramos da ciência e especialmente na literatura, nomes ilustres, que ombreiam com os mais insignes da capital da República, onde muito prosador, poeta e economista vive à sombra das glórias e dos méritos que entre si mesmos distribuem os congregados da conhecida igrejinha do elogio mútuo".

Também me recordo das palavras de Heitor Liraros os que leiem. Há muitos conhecedores de tique penso, que tem vivido sempre em Teresina e a isso acabo de atribuir o fato de não ser mais conhecido.

Nesta chapada há ainda uma circunstância: são raros os que lêem. Há muitos conhecedores de títulos de livros. A mocidade foi arrastada aos salões das bestiológicas tertúlias. Tertúlia quase todo dia. Existem mais clubes nesta cidade do que entidades culturais. No Dia da Cultura a cidade viveu de comentar a ausência de Pelé numa partida de futebol. Nesses clubes se confirma o vazio da vida. Comes e bebes. Desfile de vestidos comprados a prestação nas butiques de luxo. Ceias esticadas até madrugada. Tudo fofo. Caridade paternalista do "natal dos pobres".

Miguel de Matos, apoiado sôbre João Pinheiro, apresenta, no seu bom trabalho, as fases em que se distribui a chamada literatura piauiense. E passa a citar os autores: Ovídio Carvalho e Silva, Leonardo Castelo Branco, César Burlamáqui, Marcos Macedo, Coriolano, Teodoro Castelo Branco, Luisa Amélia, Licurgo Paiva, Areia Leão, Cunha Martins, Costa Alvarenga, Davi Caldas - e tantos outros. Em seguida, escreve crítica ligeira de alguns como Da Costa e Silva, Ferry, Assis Brasil, Fontes Ibiapina, O. G. Rêgo, Castro Aguiar, Altevir Alencar, Martins Napoleão, Félix Pacheco, Olímpio Costa, Luís Lopes, Cristino, Bugyja, H. Dobal, Álvaro Pacheco, Gregório de Morais, Mário Faustino, Barros Pinho, Miguel de Moura, Balduíno de Deus, Clóvis Moura, William Dias - e transcreve apreciação que fiz a Miguel de Matos, Herculano, Ribeiro e Silva e Conceição C. Branco.

De mim, diz Miguel de Matos: "Citado constantemente, no texto desta pequena obra, como critico literário de primeira grandeza, é uma pena que o professor e acadêmico José de Arimathéa Tito Filho não tenha ainda, obstaculado pelas dificuldades publicitárias do meio, publicado uma obra de fôlego, êle que, entre nós, constitui uma verdadeira máquina de fazer literatura, e da melhor. Cito de sua autoria três obras de pequena monta, no sentido meramente material, DA ATUALIDADE DO LATIM VULGAR, O PROBLEMA SOCIAL DA INFÂNCIA e COMBUSTÌVEL E ALIMENTO. Tito Filho, sem nenhum favor, ode ser chamado de PADRINHO de quase todos os intelectuais piauienses de sua geração e das gerações que vêm sucedendo à sua. escolhido o assunto, estruturada e escrita a obra, lá vai o estreante bater à sua porta à procura de um prefácio que lhe entusiasme a publicação, afastando dêle, de imediato, o natural temor de enfrentar o terno bicho-papão do pobre iniciante: o público. E assim vai êle, como muitos outros talentos da terra, esbanjando inteligência e cultura na literatura das estações de rádio e de jornais, edificando mais no vento o que poderia construir no granito. Sua palestra, onde quer que se ache, derivada sempre para assuntos culturais, é uma verdadeira aula".

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Devo esclarecer a Miguel de Matos que meu livrinho DA ATUALIDADE DO LATIM VULGAR trata de assunto que nenhum estudioso procurou evidenciar: todos nós falamos a mesma língua dos romanos, o latim, o latim do povo, o latim transformado através dos séculos. Faço demonstração do fato abundantemente. Ninguém neste país realizou trabalho assim. Mas sou piauiense e moro em Teresina, e daqui só desaparecerei no rumo de um dos cemitérios locais. Ou então "Prá Pasargada", como Manuel Bandeira, para que eu me descanse de enfrentar as limitações do cotidiano:

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
E a cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

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Discordo de Miguel de Matos nas referencias com que me incentiva. Valho muito pouco intelectualmente. Talvez seja o mais insosso dos escrevedores desta terra. Mas discordo muito de Miguel de Matos quando o autor de "Caminheiros da Sensibilidade" atesta que no jornalista se EDIFICA NO VENTO. Não dos nãos. Tôda a percuciente capacidade de João Brígido ficou nas páginas de "Unitário". Hipólito da Costa e Evaristo da Veiga estão mais vivos do que mortos porque foram jornalistas. As grandes vitórias intelectuais de Rui êle as conquistou no jornal - e copiada do jornal saiu grande parte dos seus livros. Balzac adquiriu fama na imprensa. Depois de famoso, começou a publicar "A Comédia Humana". Os contos mais admirados de Machado de Assis saíram em jornal. De crônicas estampadas na imprensa Raquel fêz livros. David Nasser publicou bons livros com o que escreveu. Que seria de Rubem Braga sem a imprensa? A obra de Rubem é coleção das crônicas oferecidas ao público pela imprensa.

Muito longe estou de ombrear-me com êsses heróis da inteligência. Tenho apenas alguns escritozinhos, mais de mil, publicados em jornais. Assunto vário. Estudos jurídicos, crônicas, lingüística, estudos sociais, memórias de pessoas e acontecimentos. Com vagar começarei o trabalho gigantesco de publicar alguns livros.

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Cabe neste final de artigo uma indagação. A gente pode dizer que EXISTE UMA LITERATURA PIAUIENSE? Comentarei o assunto em próxima edição. Por hoje, estas considerações, e parabéns ao esfôrço de J. Miguel de Matos pela publicação da "Síntese Bibliográfica da Literatura Piauiense".        



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 5, 5 dez. 1971.