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sábado, 25 de outubro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (190)

"GEOGRAFIA ILUSTRADA", edição dedicada ao Piauí, recentemente vendida, estampa o seguinte: "Em meados do século XVII os rebanhos começaram a se distanciar do rio São Francisco. A partir do Recife e de Salvador, os sertanistas convergiram para a região do médio Parnaíba, entre o Gurguéia e o Poti. Entre êles, dois nomes se destacam: Domingos Afonso Mafrense, rendeiro da Casa da Tôrre de Garcia d'Ávila, e o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho. Deixando o São Francisco, desceram os rios Gurguéia e Poti, percorrendo a região que vai do Gurguéia ao Poti".

Pela indicação transcrita, entende-se que o português Mafrense e o paulista Jorge Velho andavam juntos, em busca das terras piauienses.

Muito se tem discutido a respeito da presença de Jorge Velho no Piauí. Na "História Geral do Brasil", o notável Varnhagen afirma: "É menos exato que neste descobrimento (do Piauí), tivesse parte o paulista Domingos Jorge".

João Pinheiro admite que Jorge Velho tenha passado, CASUALMENTE, "por êstes longínquos rincões". Num livro muito curioso ("Aconteceu no Velho São Paulo") o historiador Raimundo de Menezes assim se refere ao paulista: "Pertinho de São Paulo, na vila de Parnaíba, foi que nasceu Domingos Jorge Velho. Seus pais eram dois antigos paulistas: Simão Jorge e dona Francisca Álvares. Desde meninote sentiu atração pela selva. E mal lhe apareceu o buço ganhou o mundo. Rumou, de preferência, para o norte do Brasil. Andou de déu em déu".

O trabalho de João Pinheiro - O descobrimento do Piauí e o documento de Pereira da Costa muito esclarece a questão. Pereira da Costa, na "Cronologia", transcreve requerimento da viúva e dos oficiais comandados por Jorge Velho. Queriam terras invocando serviços prestados ao Estado - afirma o documento. E dizem que vinte e quatro ou vinte e cinco anos antes da guerra dos Palmares, Jorge Velho habitava o Piauí. Observe-se que Jorge Velho foi para Palmares combater os negros rebeldes, a chamado do governador de Pernambuco, Souto Maior, em mil seiscentos e oitenta e sete.

O requerimento da viúva diz ainda que, saindo para Palmares, Jorge Velho largou "terras, povoados, criações e lavouras sem reparo algum para servir Sua Majestade".

Analisando êsse documento, João Pinheiro oferece estas considerações:

1) em 1662 ou 1663, Jorge Velho saiu de São Paulo e chegou ao interior do Piauí.

2) estabeleceu-se com fazendas de gado ao longo do Parnaíba e do Poti.

3) vinte e cinco anos depois deixou bens e criações e dirigiu-se para Palmares.

4) a ida para Palmares verificou-se em 1687.

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A quem cabe a prioridade do DEVASSAMENTO do Piauí? A Jorge Velho? A Mafrense? Pelo documento referido, transcrito na "Cronologia" de Pereira da Costa, cabe a Jorge Velho, pois Mafrense (Domingos Afonso Sertão), segundo Rocha Pita (citado por Odilon Nunes), penetrou o Piauí e, 1671. Nessa ocasião se encontrou com Jorge Velho que "chegara àquela parte pouco tempo antes que o capitão Domingos Afonso a entrasse" (Rocha Pita - citação de Odilon Nunes).

A documentação a respeito de Mafrense, porém, é de 1674 e não de 1671. Odilon Nunes escreve 1674 como data da chegada de Mafrense.

João Pinheiro, apoiado sôbre eruditos estudiosos do assunto, refuta a prioridade de Jorge Velho, transcrevendo opiniões de:

- Alencastre (aponta Mafrense como descobridor do Piauí).

- Rocha Pombo (encara com dúvida a tese da prioridade de Jorge Velho).

- Barbosa Lima Sobrinho e Basílio de Magalhães (rejeitaram o documento da "Cronologia" de Pereira da Costa).

- Pedro Taques (não aponta Jorge Velho entre os paulistas que houvessem chegado ao Piauí).

Acentua João Pinheiro: "do evidenciado se infere que é completamente improcedente a asserção de que Domingos Jorge Velho tivesse permanecido em terras piauienses no tempo a que se refere o documento de Pereira da Costa, que ali tivesse edificado qualquer povoação ou deixado benfeitorias cujas vagas recordações, ao menos, perdurassem na memória dos pósteros como o mais insignificante traço de sua passagem".

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O requerimento da viúva de Jorge Velho afirma que êste deixou o Piauí para a Guerra dos Palmares. Não é verdade, embora o ilustrado e seguro Odilon Nunes, pesquisador notável da história do Piauí, afirme: "Resolve então o Governador de Pernambuco convidar os paulistas do Piauí para a destruição de Palmares".

João Pinheiro registra patente do Governo Geral, passada a Jorge Velho, em que se afirma que êle (na empresa de Palmares) "se abalou da Vila de são Paulo". O citado João Pinheiro passa a referir-se a Barbosa Lima Sobrinho, que afirma haver Jorge Velho deixado São Paulo para a guerra de Palmares.

Barbosa Lima Sobrinho escreve o testemunho de Matias da Cunha, governador geral do Brasil, arcebispo Manuel da Ressurreição, Câmara Coutinho e outros. Conclui João Pinheiro: "É, portanto, inteiramente fora de dúvida que, para a conquista dos Palmares, Domingos Jorge Velho partiu da antiga vila de São Paulo, onde se encontrava, e não do Piauí, conforme pretende o documento de Pereira da Costa".

A respeito do fato, leio em Raimundo de Menezes: "Estava êle, naquela época - alturas de 1687 - no seu presídio do Piancó, como assim chamava tais paragens, fugindo à perseguição que lhe moveram, em Piratininga, os políticos da família Camargo, quando o procuraram três portadores com mensagens e cartas do governador da Capitania de Pernambuco. Eram frei André de Anunciação, carmelita calçado, Cristovão de Mendonça Uchoa, escudeiro das milícias, e o capitão Belchior Dias Barbosa. O governador João da Cunha Soto-Maior mandava convidar com uma carta ao dito Mestre de Campo (Jorge Velho) para vir fazer a guerra dos ditos negros. Os DITOS NEGROS estavam, há quase cinquenta anos, dando bem o que fazer, atocaiados nos famosos Quilombos dos Palmares, enfrentando a tudo e a todos, com o maior destemor e a mais afoitada audácia".

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Interessante ler o que escreveu Azevedo Marques: “êste audaz paulista durante anos entreteve-se nos sertões do Piauí em correrias contra os selvagens, fundando cêrca de cinquenta fazendas de criação de gado, das quais vinte e quatro com setecentos e onze escravos, ainda há pouco tempo pertencentes ao Estado".

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Engana-se redondamente Azevedo Marques. As fazendas foram trabalho de Mafrense, que deixou testamento, confiando-as à administração dos jesuítas "até o fim do mundo".

As fazendas de Mafrense passaram à Coroa Portuguêsa quando Pombal expulsou de Portugal e colônias os jesuítas e confiscou-lhes os bens. Com a Independência do Brasil, denominaram-se Fazendas Nacionais. Ao tempo da Assembléia Constituinte de 1946, o deputado Adelmar Rocha apresentou emenda transferindo-as para o patrimônio do Piauí. Aprovada a proposta, foi esta incorporada ao texto das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1946 - e ainda hoje elas pertencem ao Piauí, depois de enriquecer muitos espertalhões, nunca punidos.

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No testamento de Domingos Mafrense há esta confissão: "Declaro que sou senhor e possuidor da metade das terras, que pedi no Piauhy com o coronel Francisco Dias d'Ávilla e seus irmãos, as quais terras descobri e povoei com grande risco de minha pessoa, e considerável despeza com adjutório dos sócios, e sem eles defendi também muitos pleitos, que se moveram sobre as ditas terras, ou parte dela".

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J. M. Pereira de Alencastre (citado por João Pinheiro) atestou: "... Domingos Afonso Sertão (Mafrense) e seu irmão que sempre serão tidos como únicos descobridores associando a seus nomes os de Francisco Dias de Ávila e Bernardo Pereira Gago, que, poderosamente, os auxiliaram nas despesas da conquista, sendo, também, dos primeiros a gozar de seus frutos".



TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 30 dez. 1971.

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