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sábado, 27 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (184)

De JOSÉ Ribamar de Barros Nunes, em correspondência de outubro de 1971: "Tito Filho. Sempre tive vontade de publicar crônicas que referissem episódios por mim vividos. Imagino que o seu conteúdo talvez possa oferecer ao leitor uma contribuiçãozinha as cinco primeiras crônicas publicadas no jornal A HORA, desta capital. Aguardo seu pronunciamento sincero por escrito e também (se achar conveniente) através do seu prestigiado programa radiofônico". OBSERVAÇÃO. Ribamar Nunes é professor acatado e consciente. Já o admirava nessa atividade, que êle desenvolve apoiado sôbre o estudo, muito devotado ao processo educacional. Sabe conviver com os alunos, estimulando-lhes iniciativas e preocupações culturais. Agora entendo-o cronista e leio-o em cinco trabalhos: "Cego Piauiense Vê", "Aeroporto de Brasília", "Conquista da Lua", "Compreensão" e "Traindo as Bases" - trabalhos divulgados pela imprensa local. A crônica é gênero dificílimo. Tomar os pequenos como os grandes episódios do dia-a-dia da vida, penetrar-lhe a sutileza, o poético, o trágico, interpretá-los com sensibilidade, alcançar de cada um a essência para projetá-la na inteligência do leitor - tudo isto é tarefa de muita nobreza intelectual. A crônica deve ser precisa e natural. De redação artística. De índole diversa, mas sempre de interêsse geral. A razão de ser do cronista está no esfôrço de FAZER VIVER, de TORNAR VIVOS os pormenores, as cousas, os seres, os pedaços de natureza. De tais aspectos, dêsse talento se enriquecem as crônicas de Ribamar Nunes. E salientam-se mais por evidente feição didática. São lições. Instruem e em razão disto preenchem as exigências do jornalismo útil, da leitura útil. Ribamar Nunes concilia jornalismo e literatura. Dou-lhe parabéns, estendendo-os ao jornal que lhe agasalhas as excelentes crônicas - trabalhos do melhor cunho interpretativo e educacional.


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VIVE o Brasil a era do refrigerante. Reino da garrafaria. Lembro-me da indicação de Claudio de Araújo Lima: "Num país como o Brasil, possuidor das mais variadas e originais frutas sumarentas, o povo foi a pouco e pouco desprezando os seus tradicionais refrescos, os quais só conseguiram sobreviver em forma, não mais de puro sumo extraído por expressão manual, mas de essências na sua maioria sintéticas, preparadas em complicadas máquinas que funcionam à vista do público, produzindo ruídos especiais, destinados a dar ao consumidor a ideia de que só aquilo exprime o progresso técnico de um povo". Nos lares ninguém fabrica mais uma laranjada, um refrêsco de tamarindo ou de caju. Vive-se a fantasia dos engarrafamentos, a fantasia da essência. Geração coca-cola. A coca-cola bem gelada - "meio de mascarar o sabor que resulta, em sua preparação, da mistura de corpos químicos perigosíssimos, entre os quais o ácido trifosfórico cafeinado - como sustenta o Dr. Paul Chanchard, cientista da Sorbonne, em seu livro LA FATIGUE - livro cuja leitura acaba, aliás, por favor o leitor imparcial à convicção de que, além de produzir um dos meios químicos mais propícios à produção da fadiga crônica do homem moderno, como êle afiança no livro referido, pode a terrível bebida ser considerada verdadeiro fator de uma espécie de toxicomania MITIS, que vai envenenando o mundo, insidiosamente". Mês passado, pelo rádio, apreciei o assunto. Revelei que muitos refrigerantes brasileiros são perniciosos, notadamente à infância e à adolescência. Os redatores do "Correio da Manhã" (Guanabara) parece que estavam ouvindo os meus comentários, pois uns dez dias depois o acreditado jornal carioca desenvolveu extraordinária campanha contra o crime da garrafaria nacional. Copio do jornal: "No capítulo dos refrigerantes, cujo consumo aumenta o tempo todo, principalmente durante os meses de verão, o artificialismo é a regra incontestada. Desde o ano de 1968, o Brasil é o segundo exportador mundial de suco de laranja concentrado e congelado, vendendo vinte e cinco mil toneladas de suco, o que representa apenas vinte e oito por cento de nossa produção cítrica. E no entanto, o consumidor brasileiro toma suco artificial quando compra laranja Fanta". E mais adiante adverte o órgão: “Tomamos óleo bromado, que muito especialistas em Bromatologia consideram cancerígeno. A Crush também usa apenas dois por cento de suco natural. A Coca-Cola e a Pepsi-Cola carregam na guaranina, que, são, quimicamente, um tóxico (trimetilxantina), mas nada precisam dizer nos seus rótulos, nem sequer que são bebidas artificiais". Eis o final do artigo do vibrante órgão de imprensa: "A reinante anarquia exige nova legislação. Refrigerantes, pastas dentrificias, remédios os mais variados estão sempre bebidos, usados, consumidos sem que se pense no consumidor, que é o pagante e a vítima. Trata-se de uma causa que o Congresso Nacional devia patrocinar. Os eleitores, isto é, os consumidores vivem num país que produz em excesso os cítricos, a uva, o guaraná, mas a verdade é que está bebendo água com açúcar e produtos tóxicos". OBSERVAÇÃO. Há um homem honrado, competente, na Secretaria de Saúde. E o Dr. Dirceu Arcoverde tem ingentes responsabilidades com a saúde do povo.

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TENHO lido alguns escritos a respeito de Gregório, sepultado no cemitério de São José, em Teresina. O povo humilde acredita-o milagroso. Dia 2 de novembro, muita vela e muita garrafa dágua se depositaram sôbre a tumba do infeliz homem. Gregório morava em Barras, Piauí. Era quase o fim da década de vinte. Rapaz trabalhador, honesto, fiel. Foi motorista de meu pai, juiz em Barras. Quando se verificou o fato, meu pai não possuía mais o automóvel. Gregório guiava um Ford,d e três pedais, acelerador na maneta direita, junto da direção. Atravessou a praça da Matriz e entrou na principal rua da cidade. Correndo de um para outro lado da rua, brincava o filho (garôto) do delegado, tenente Florentino, da Polícia. Não foi possível evitar o atropelamento. Em alguns pontos a memória não me ajuda. Não me recordo se o menino morreu no mesmo dia, ou no dia seguinte. Gregório foi prêso. Havia em Barras dois motoristas, irmãos, proprietários de caminhão. Ainda vivem. Pessoas estimadas e decentes. Um dêles residia no bairro Boa Vista, um quilômetro, mais ou menos, distante da cidade. Hora morta da noite, o delegado Florentino procura um dos irmãos, no bairro. Tira-o do repouso. Dá-lhe ordem de aprontar-se para a viagem a Teresina. Passa pela cadeia. Acorrenta Gregório, atira-o ao veículo. Viagem longa e penosa naqueles tempos. Não havia ponto sobre o rio Poti. Travessia de pontão. Do lado de cá, Florentino amarra o prisioneiro, braços para cima, abertos. Mata-o a tiros. Não quis atender ao menos matar a terrível sêde de Gregório. Fugiu o criminoso. Tempos depois, foi aprisionado. Júri em Teresina. Muita gente. Presidência de meu pai, já juiz da capital. Promotor, o saudoso Oton Rêgo, dramático, a exibir as correntes de ferro da suplicante viagem de Gregório. Réu condenado: dezenove anos. Segundo julgamento: absolvição. Florentino deixou o Piauí. Buscou a terra natal, a Paraíba, onde morreu. Pode ser que a memória tenha desajudado nalgum aspecto da narrativa. Em suas linhas gerais, porém, esta é a história do infeliz Gregório, cujo sofrimento o povo de todos os anos tanto homenageia. Conheci Gregório. Estimava-o. Admirava-o porque sabia êle guiar automóvel. Eu era garotote. Quando meu pai possuía um velho Ford, Gregório me sentava entre as pernas e deixava que eu manejasse a direção. Morenão bom, prestativo, digno de confiança. A gente nunca pode esquecer o sacrifício de Gregório.
  


In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 5, 03 dez. 1971.      

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