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domingo, 7 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (181)

NO ENSAIO de Celestino Sachet - "Fundamentos da Literatura Catarinense", de muita lucidez, encontrei referência a Péricles Prade - poeta, contista, crítico, sociólogo, jurista -, que Sachet situa numa das "ilhas" literárias de Santa Catarina, a ilha do homem urbano, com esta referência: "Hoje, Péricles Prade mergulha em experiências com o surrealismo policial-literário". Leio agora "Os Milagres do Cão Jerônimo", coleção de contos que muito projetou Péricles Prade na minha imaginação. Com a leitura, senti que são verdadeiras e honestas as observações de Jomard Muniz de Brito: há, no Brasil, impasse entre o artista e o público. Neste país é difícil o diálogo entre o artista e o público, pois o artista realiza uma coisa mental, daí a necessidade de conhecer as regras e os meios do seu trabalho. Não se compreende a obra literária sem o conhecimento da história e da sociologia da cultura. Santa Rosa foi muito percuciente quando escreveu: "A escola tem, pois, hoje, um papel de excepcional importância na direção artístico-espiritual do povo. As artes exigem conhecimento e a escola deve ministrá-lo completamente. Ao lado do ensino do que se deve fazer, é uma necessidade ensina a ver". Eu acrescentaria: ensinar também a ser, uma vez que, no caso, não se compreendem as mensagens de "Os milagres do Cão Jerônimo" sem orientação estética. Concepções quase [de] irrealidade. Exaltação do subconsciente, como queria Freud - versão literária do mundo subconsciente, primário e irracional. Automatismo psíquico puro, de Bréton: "Automatisme psychique pur par lequel ou se propose d'exprimer... la pensée em l'abscence de tout contrôle exercé par la raison, em dehors de toute preocupation esthétique ou morale".

Leia-se esta pequena obra-prima do livro de Péricles Prade:

"Com o demônio nos olhos, a magra mulher lança-se um olhar guerreiro. Começo a percorrer as arquibancadas, impressionado, irritando-me com o vendedor de agulhas que insistia na leitura de um poema imoral. Na corrida, imprimindo incrível velocidade, esbarro numa velha senhora que, perto do poço localizado à entrada do túnel, com fino chicote bate nas costas de um belo animal. O sangue cobre os azulejos e eu me sinto feliz. Na décima quinta volta o cavalo de crinas verdes levanta vôo, planando alegre e descrevendo nos céus complicada lição de alquimia. Um senhor baixo, que se encontrava sentado, retirou de uma pasta negra [um] vincado papiro, anotando apressadamente as fórmulas. Levanta-se e, antes de se perder na multidão, diz com estranha simplicidade: - Não autorizei a exibição. Hoje haverá morte no meu exército de cavalos alados". (Conto "No hipódromo").

Admirável estulto conto ("O tapête indiano"):

"Todas as manhãs, invariavelmente, a prostituta batia no tapête indiano. Despedia-se dos conhecidos amantes, arrumava a cama com doentia organização e o passava nas mãos, esmurrando-o com fúria incontrolável. Diziam as vizinhas que ela o espancava de forma comovedora. Como vingar-se? o tapête esperava por uma oportunidade, mas não surgiam as condições. Era pôsto sôbre o chão ou pendurado na cêrca. Desprestigiava-o o fato de ter parado na zona de prostituição, de origens tão indignas. Passaram-se os anos. Mais velho o tapête, mais velha a prostituta. Inúmeras as mudanças, perspectiva de fatal decadência. Agora a ruína eterna, a podridão maior, a impossibilidade de existir. Eis a prostituta: animal, verdes as pelancas, equilibrada na lembrança dos ossos adolescentes. Estamos no inverno, brutal a geada cobrindo os pastos, as paisagens européias nas retinas, renascidas. Não há mais camas, nem sujos lençóis de tão amados calores. O tapête sob o braço esquerdo, caminha a prostituta, amparando-se nos muros, caída agora, pálida-cansada. Que estranho o olhar do tapête indiano! Bastou Adriana encolher as pernas, cerrar as pálpebras, para envolver-se, rápido, no pescoço. Apertou aos poucos, esbugalhados os olhos, enigmático o sorriso dentro da noite. Enrolou-se e fugiu, aproveitando a escuridão para enfiar-se no mais próximo esgôto, à beira da calçada".

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Todos os contos de Péricles são mensagens de desespêro ante as incompreensões de um mundo [de] quase escuridade. Mundo de paixões e vícios divinizados, de espírito demoníaco, de sentimento do incontrolável, de misteriosa angústia frente a fôrças malignas. As mensagens impregnam-se de realismo mágico, de mitologismo, de satanismo. Em tôdas, o misterioso e o fantástico do surrealismo.

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Leiam-se as concepções de Prade nos dois contos transcritos e nos outros que compõem "Os milagres do Cão Jerônimo". Fantasias? Admita-se, mas como fantasia-análise para o autoconhecimento do homem. A superior inteligência de Péricles mostra, pela fantasia, os efeitos patológicos que se desenvolvem quando o homem se encontra na presença de situações que não pode vencer por meios conscientes, da forma que ensina Jung.

Linguagem fluente, asseada, simples, cativante, de quem conhece a técnica da boa e expressiva escritura, Péricles Prade é sobretudo um conhecedor da alma humana, exemplo de artista moderno na execução de trabalho de educação psicológica sôbre o público. Tira sua fecundidade do mito, que será a fonte de tôda a criação futura. Os seus contos constituem aquêle sintoma e aquêle símbolo que os estudiosos consideram uma maneira de destruição e de renascimento do mundo: maneira que se faz sentir política, social e filosoficamente. Péricles Prade está vivendo no TEMPO CERTO (dos gregos) "para uma metamorfose dos deuses, isto é, dos princípios e símbolos fundamentais". Comentando esta transformação dos princípios e símbolos, o autor de "O eu desconhecido" escreveu estas palavras proféticas, que bem se aplicam às concepções de Péricles Prade: "Esta peculiaridade do nosso tempo, que com tôda certeza não é de nossa escolha consciente, é a expressão do homem inconsciente que dentro de nós está mudando. As gerações vindouras terão de tomar em consideração essa importante transformação, se a humanidade não se destruir a si mesma com os próprios recursos de tecnologia e ciência".


In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 5, 7 dez. 1971.

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