De JOSÉ Ribamar de
Barros Nunes, em correspondência de outubro de 1971: "Tito Filho. Sempre tive vontade de publicar crônicas que referissem
episódios por mim vividos. Imagino que o seu conteúdo talvez possa oferecer ao
leitor uma contribuiçãozinha as cinco primeiras crônicas publicadas no jornal A
HORA, desta capital. Aguardo seu pronunciamento sincero por escrito e também
(se achar conveniente) através do seu prestigiado programa radiofônico".
OBSERVAÇÃO. Ribamar Nunes é professor acatado e consciente. Já o admirava nessa
atividade, que êle desenvolve apoiado sôbre o estudo, muito devotado ao
processo educacional. Sabe conviver com os alunos, estimulando-lhes iniciativas
e preocupações culturais. Agora entendo-o cronista e leio-o em cinco trabalhos:
"Cego Piauiense Vê", "Aeroporto de Brasília",
"Conquista da Lua", "Compreensão" e "Traindo as
Bases" - trabalhos divulgados pela imprensa local. A crônica é gênero dificílimo.
Tomar os pequenos como os grandes episódios do dia-a-dia da vida, penetrar-lhe
a sutileza, o poético, o trágico, interpretá-los com sensibilidade, alcançar de
cada um a essência para projetá-la na inteligência do leitor - tudo isto é
tarefa de muita nobreza intelectual. A crônica deve ser precisa e natural. De
redação artística. De índole diversa, mas sempre de interêsse geral. A razão de
ser do cronista está no esfôrço de FAZER VIVER, de TORNAR VIVOS os pormenores,
as cousas, os seres, os pedaços de natureza. De tais aspectos, dêsse talento se
enriquecem as crônicas de Ribamar Nunes. E salientam-se mais por evidente
feição didática. São lições. Instruem e em razão disto preenchem as exigências
do jornalismo útil, da leitura útil. Ribamar Nunes concilia jornalismo e
literatura. Dou-lhe parabéns, estendendo-os ao jornal que lhe agasalhas as excelentes
crônicas - trabalhos do melhor cunho interpretativo e educacional.
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VIVE o Brasil a era
do refrigerante. Reino da garrafaria. Lembro-me da indicação de Claudio de
Araújo Lima: "Num país como o
Brasil, possuidor das mais variadas e originais frutas sumarentas, o povo foi a
pouco e pouco desprezando os seus tradicionais refrescos, os quais só
conseguiram sobreviver em forma, não mais de puro sumo extraído por expressão
manual, mas de essências na sua maioria sintéticas, preparadas em complicadas
máquinas que funcionam à vista do público, produzindo ruídos especiais,
destinados a dar ao consumidor a ideia de que só aquilo exprime o progresso
técnico de um povo". Nos lares ninguém fabrica mais uma laranjada, um
refrêsco de tamarindo ou de caju. Vive-se a fantasia dos engarrafamentos, a
fantasia da essência. Geração coca-cola. A coca-cola bem gelada - "meio de mascarar o sabor que resulta, em sua
preparação, da mistura de corpos químicos perigosíssimos, entre os quais o
ácido trifosfórico cafeinado - como sustenta o Dr. Paul Chanchard, cientista da
Sorbonne, em seu livro LA FATIGUE - livro cuja leitura acaba, aliás, por favor
o leitor imparcial à convicção de que, além de produzir um dos meios químicos
mais propícios à produção da fadiga crônica do homem moderno, como êle afiança
no livro referido, pode a terrível bebida ser considerada verdadeiro fator de
uma espécie de toxicomania MITIS, que vai envenenando o mundo,
insidiosamente". Mês passado, pelo rádio, apreciei o assunto. Revelei que
muitos refrigerantes brasileiros são perniciosos, notadamente à infância e à
adolescência. Os redatores do "Correio da Manhã" (Guanabara)
parece que estavam ouvindo os meus comentários, pois uns dez dias depois o
acreditado jornal carioca desenvolveu extraordinária campanha contra o crime da
garrafaria nacional. Copio do jornal: "No
capítulo dos refrigerantes, cujo consumo aumenta o tempo todo, principalmente
durante os meses de verão, o artificialismo é a regra incontestada. Desde o ano
de 1968, o Brasil é o segundo exportador mundial de suco de laranja concentrado
e congelado, vendendo vinte e cinco mil toneladas de suco, o que representa
apenas vinte e oito por cento de nossa produção cítrica. E no entanto, o
consumidor brasileiro toma suco artificial quando compra laranja Fanta".
E mais adiante adverte o órgão: “Tomamos
óleo bromado, que muito especialistas em Bromatologia consideram cancerígeno. A
Crush também usa apenas dois por cento de suco natural. A Coca-Cola e a
Pepsi-Cola carregam na guaranina, que, são, quimicamente, um tóxico
(trimetilxantina), mas nada precisam dizer nos seus rótulos, nem sequer que são
bebidas artificiais". Eis o final do artigo do vibrante órgão de
imprensa: "A reinante anarquia exige
nova legislação. Refrigerantes, pastas dentrificias, remédios os mais variados
estão sempre bebidos, usados, consumidos sem que se pense no consumidor, que é
o pagante e a vítima. Trata-se de uma causa que o Congresso Nacional devia
patrocinar. Os eleitores, isto é, os consumidores vivem num país que produz em
excesso os cítricos, a uva, o guaraná, mas a verdade é que está bebendo água com
açúcar e produtos tóxicos". OBSERVAÇÃO. Há um homem honrado,
competente, na Secretaria de Saúde. E o Dr. Dirceu Arcoverde tem ingentes
responsabilidades com a saúde do povo.
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TENHO lido alguns
escritos a respeito de Gregório, sepultado no cemitério de São José, em
Teresina. O povo humilde acredita-o milagroso. Dia 2 de novembro, muita vela e
muita garrafa dágua se depositaram sôbre a tumba do infeliz homem. Gregório
morava em Barras, Piauí. Era quase o fim da década de vinte. Rapaz trabalhador,
honesto, fiel. Foi motorista de meu pai, juiz em Barras. Quando se verificou o
fato, meu pai não possuía mais o automóvel. Gregório guiava um Ford,d e três
pedais, acelerador na maneta direita, junto da direção. Atravessou a praça da
Matriz e entrou na principal rua da cidade. Correndo de um para outro lado da
rua, brincava o filho (garôto) do delegado, tenente Florentino, da Polícia. Não
foi possível evitar o atropelamento. Em alguns pontos a memória não me ajuda.
Não me recordo se o menino morreu no mesmo dia, ou no dia seguinte. Gregório
foi prêso. Havia em Barras dois motoristas, irmãos, proprietários de caminhão.
Ainda vivem. Pessoas estimadas e decentes. Um dêles residia no bairro Boa
Vista, um quilômetro, mais ou menos, distante da cidade. Hora morta da noite, o
delegado Florentino procura um dos irmãos, no bairro. Tira-o do repouso. Dá-lhe
ordem de aprontar-se para a viagem a Teresina. Passa pela cadeia. Acorrenta
Gregório, atira-o ao veículo. Viagem longa e penosa naqueles tempos. Não havia
ponto sobre o rio Poti. Travessia de pontão. Do lado de cá, Florentino amarra o
prisioneiro, braços para cima, abertos. Mata-o a tiros. Não quis atender ao
menos matar a terrível sêde de Gregório. Fugiu o criminoso. Tempos depois, foi aprisionado.
Júri em Teresina. Muita gente. Presidência de meu pai, já juiz da capital.
Promotor, o saudoso Oton Rêgo, dramático, a exibir as correntes de ferro da
suplicante viagem de Gregório. Réu condenado: dezenove anos. Segundo
julgamento: absolvição. Florentino deixou o Piauí. Buscou a terra natal, a
Paraíba, onde morreu. Pode ser que a memória tenha desajudado nalgum aspecto da
narrativa. Em suas linhas gerais, porém, esta é a história do infeliz Gregório,
cujo sofrimento o povo de todos os anos tanto homenageia. Conheci Gregório.
Estimava-o. Admirava-o porque sabia êle guiar automóvel. Eu era garotote.
Quando meu pai possuía um velho Ford, Gregório me sentava entre as pernas e
deixava que eu manejasse a direção. Morenão bom, prestativo, digno de
confiança. A gente nunca pode esquecer o sacrifício de Gregório.
In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí,
Teresina, p. 5, 03 dez. 1971.