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sábado, 27 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (184)

De JOSÉ Ribamar de Barros Nunes, em correspondência de outubro de 1971: "Tito Filho. Sempre tive vontade de publicar crônicas que referissem episódios por mim vividos. Imagino que o seu conteúdo talvez possa oferecer ao leitor uma contribuiçãozinha as cinco primeiras crônicas publicadas no jornal A HORA, desta capital. Aguardo seu pronunciamento sincero por escrito e também (se achar conveniente) através do seu prestigiado programa radiofônico". OBSERVAÇÃO. Ribamar Nunes é professor acatado e consciente. Já o admirava nessa atividade, que êle desenvolve apoiado sôbre o estudo, muito devotado ao processo educacional. Sabe conviver com os alunos, estimulando-lhes iniciativas e preocupações culturais. Agora entendo-o cronista e leio-o em cinco trabalhos: "Cego Piauiense Vê", "Aeroporto de Brasília", "Conquista da Lua", "Compreensão" e "Traindo as Bases" - trabalhos divulgados pela imprensa local. A crônica é gênero dificílimo. Tomar os pequenos como os grandes episódios do dia-a-dia da vida, penetrar-lhe a sutileza, o poético, o trágico, interpretá-los com sensibilidade, alcançar de cada um a essência para projetá-la na inteligência do leitor - tudo isto é tarefa de muita nobreza intelectual. A crônica deve ser precisa e natural. De redação artística. De índole diversa, mas sempre de interêsse geral. A razão de ser do cronista está no esfôrço de FAZER VIVER, de TORNAR VIVOS os pormenores, as cousas, os seres, os pedaços de natureza. De tais aspectos, dêsse talento se enriquecem as crônicas de Ribamar Nunes. E salientam-se mais por evidente feição didática. São lições. Instruem e em razão disto preenchem as exigências do jornalismo útil, da leitura útil. Ribamar Nunes concilia jornalismo e literatura. Dou-lhe parabéns, estendendo-os ao jornal que lhe agasalhas as excelentes crônicas - trabalhos do melhor cunho interpretativo e educacional.


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VIVE o Brasil a era do refrigerante. Reino da garrafaria. Lembro-me da indicação de Claudio de Araújo Lima: "Num país como o Brasil, possuidor das mais variadas e originais frutas sumarentas, o povo foi a pouco e pouco desprezando os seus tradicionais refrescos, os quais só conseguiram sobreviver em forma, não mais de puro sumo extraído por expressão manual, mas de essências na sua maioria sintéticas, preparadas em complicadas máquinas que funcionam à vista do público, produzindo ruídos especiais, destinados a dar ao consumidor a ideia de que só aquilo exprime o progresso técnico de um povo". Nos lares ninguém fabrica mais uma laranjada, um refrêsco de tamarindo ou de caju. Vive-se a fantasia dos engarrafamentos, a fantasia da essência. Geração coca-cola. A coca-cola bem gelada - "meio de mascarar o sabor que resulta, em sua preparação, da mistura de corpos químicos perigosíssimos, entre os quais o ácido trifosfórico cafeinado - como sustenta o Dr. Paul Chanchard, cientista da Sorbonne, em seu livro LA FATIGUE - livro cuja leitura acaba, aliás, por favor o leitor imparcial à convicção de que, além de produzir um dos meios químicos mais propícios à produção da fadiga crônica do homem moderno, como êle afiança no livro referido, pode a terrível bebida ser considerada verdadeiro fator de uma espécie de toxicomania MITIS, que vai envenenando o mundo, insidiosamente". Mês passado, pelo rádio, apreciei o assunto. Revelei que muitos refrigerantes brasileiros são perniciosos, notadamente à infância e à adolescência. Os redatores do "Correio da Manhã" (Guanabara) parece que estavam ouvindo os meus comentários, pois uns dez dias depois o acreditado jornal carioca desenvolveu extraordinária campanha contra o crime da garrafaria nacional. Copio do jornal: "No capítulo dos refrigerantes, cujo consumo aumenta o tempo todo, principalmente durante os meses de verão, o artificialismo é a regra incontestada. Desde o ano de 1968, o Brasil é o segundo exportador mundial de suco de laranja concentrado e congelado, vendendo vinte e cinco mil toneladas de suco, o que representa apenas vinte e oito por cento de nossa produção cítrica. E no entanto, o consumidor brasileiro toma suco artificial quando compra laranja Fanta". E mais adiante adverte o órgão: “Tomamos óleo bromado, que muito especialistas em Bromatologia consideram cancerígeno. A Crush também usa apenas dois por cento de suco natural. A Coca-Cola e a Pepsi-Cola carregam na guaranina, que, são, quimicamente, um tóxico (trimetilxantina), mas nada precisam dizer nos seus rótulos, nem sequer que são bebidas artificiais". Eis o final do artigo do vibrante órgão de imprensa: "A reinante anarquia exige nova legislação. Refrigerantes, pastas dentrificias, remédios os mais variados estão sempre bebidos, usados, consumidos sem que se pense no consumidor, que é o pagante e a vítima. Trata-se de uma causa que o Congresso Nacional devia patrocinar. Os eleitores, isto é, os consumidores vivem num país que produz em excesso os cítricos, a uva, o guaraná, mas a verdade é que está bebendo água com açúcar e produtos tóxicos". OBSERVAÇÃO. Há um homem honrado, competente, na Secretaria de Saúde. E o Dr. Dirceu Arcoverde tem ingentes responsabilidades com a saúde do povo.

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TENHO lido alguns escritos a respeito de Gregório, sepultado no cemitério de São José, em Teresina. O povo humilde acredita-o milagroso. Dia 2 de novembro, muita vela e muita garrafa dágua se depositaram sôbre a tumba do infeliz homem. Gregório morava em Barras, Piauí. Era quase o fim da década de vinte. Rapaz trabalhador, honesto, fiel. Foi motorista de meu pai, juiz em Barras. Quando se verificou o fato, meu pai não possuía mais o automóvel. Gregório guiava um Ford,d e três pedais, acelerador na maneta direita, junto da direção. Atravessou a praça da Matriz e entrou na principal rua da cidade. Correndo de um para outro lado da rua, brincava o filho (garôto) do delegado, tenente Florentino, da Polícia. Não foi possível evitar o atropelamento. Em alguns pontos a memória não me ajuda. Não me recordo se o menino morreu no mesmo dia, ou no dia seguinte. Gregório foi prêso. Havia em Barras dois motoristas, irmãos, proprietários de caminhão. Ainda vivem. Pessoas estimadas e decentes. Um dêles residia no bairro Boa Vista, um quilômetro, mais ou menos, distante da cidade. Hora morta da noite, o delegado Florentino procura um dos irmãos, no bairro. Tira-o do repouso. Dá-lhe ordem de aprontar-se para a viagem a Teresina. Passa pela cadeia. Acorrenta Gregório, atira-o ao veículo. Viagem longa e penosa naqueles tempos. Não havia ponto sobre o rio Poti. Travessia de pontão. Do lado de cá, Florentino amarra o prisioneiro, braços para cima, abertos. Mata-o a tiros. Não quis atender ao menos matar a terrível sêde de Gregório. Fugiu o criminoso. Tempos depois, foi aprisionado. Júri em Teresina. Muita gente. Presidência de meu pai, já juiz da capital. Promotor, o saudoso Oton Rêgo, dramático, a exibir as correntes de ferro da suplicante viagem de Gregório. Réu condenado: dezenove anos. Segundo julgamento: absolvição. Florentino deixou o Piauí. Buscou a terra natal, a Paraíba, onde morreu. Pode ser que a memória tenha desajudado nalgum aspecto da narrativa. Em suas linhas gerais, porém, esta é a história do infeliz Gregório, cujo sofrimento o povo de todos os anos tanto homenageia. Conheci Gregório. Estimava-o. Admirava-o porque sabia êle guiar automóvel. Eu era garotote. Quando meu pai possuía um velho Ford, Gregório me sentava entre as pernas e deixava que eu manejasse a direção. Morenão bom, prestativo, digno de confiança. A gente nunca pode esquecer o sacrifício de Gregório.
  


In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 5, 03 dez. 1971.      

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (183)

DESSA extraordinária figura humana que se chama Félix Aires, do Rio, com data de 9-12-71: "Tito Filho. Recebi e já entreguei o ofício de designação dos acadêmicos Cristino Castelo Branco, Martins Napoleão, Bugyja Britto e Moura Rêgo como representantes da Academia Piauiense de Letras junto à Federação das Academias de Letras do Brasil. Brevemente estarei em Teresina para conversar com o amigo e tomar um sorvête de bacuri. Divulgue êste regime alimentar para a velhice: arroz integral, pão integral, legumes, verduras, feijão, bôlo de bacalhau com cará, abóbora cozida, grão-de-bico. Tempêro: óleo, alho e um sal especial. Frutas: mamão, melancia, morango, maça. O regime emagrece o paciente, mas os achaques da velhice desaparecem".

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Outra recomendação de Karla: "Peço que diga a função sintática de todos os elementos das sentenças: "Admira-se a Bernardes" - "O livro é meu”. RESPOSTA. Primeira oração. Sujeito indeterminado. O pronome SE indica tal indeterminação. Predicado é o verbo. Objeto direto: a Bernardes. Trata-se de objeto direto preposicionado, de que em alguns casos a gente pode fazer uso. Um dos casos: quando o objeto direto aparece representado por nome de pessoa. Segunda oração: o predicado é o verbo. Sujeito: o livro. O artigo aí faz papel de adjunto adnominal. MEU funciona como predicativo do sujeito.

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Livros recomendados para leitura: "Deus e o Homem na Poesia e na Filosofia", de Amorim de Carvalho; e "La Fragmentacion Linguística de la Romania", de Wartburg.

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Outro mandamento de Karla: "Faça a distinção entre TE e TI". RESPOSTA. Os pronomes chamados oblíquos átonos aparecem com verbos: antes do verbo, depois do verbo, no meio do verbo. É ocaso do pronome TE. Empregam-se os oblíquos tônicos quando acompanhados e preposição. É o caso de TI. Exemplificação: ABRAÇO-TE, DEI A TI, FALEI DE TI, ENTRE TI E MIM.

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CONCURSO de dança: o casal que conseguir dançar quarenta horas, seguidamente, ganhará dois mil cruzeiros de premiação. A isto se está chamando de A FESTA DO SÉCULO. Pobre mocidade. Pobre Teresina. Há três ou quatro anos aqui estiveram médicos, psicólogos, sociólogos, economistas. Realizaram inquéritos. Com alguns conversei. Revelaram-me que Teresina é a cidade brasileira em que mais há preocupação com futilidades, com superfluidades. Espantoso. De um de janeiro a trinta e um de dezembro - festas, festinhas, festocas, festanças. Comes e bebes. Rainha disto e rainha daquilo. Misse de qualquer cousa. Fartança de tertúlia. Clubes das mais variadas denominações. Afrontosas a ociosidade e a dissipação das classes altas. Afrontosa a uma cidade pobre, de aflitivos problemas sociais. Cidade paupérrima, bairros sujos, de sentinas de buracos, cidade escura, lixenta, desarborizada, desnutrida. Mendicância nas ruas, meretrício que é a fisionomia doente da cidade. E a juventude? Que se está fazendo pela juventude? Então é possível educar com o ócio e com o supérfluo? Vive-se aqui de bródios, de ceias esticadas, de reuniões para o vazio. E venha concurso de dança. Rebolado de quarenta horas. Parece que ninguém preza a saúde dos moços. Quanto mais a mocidade receber a mensagem de que a vida é prazer, luxo, brutalidade, materialização da vida - melhor. As livrarias vivem às môscas. Agoniza a vida intelectual. Constituem CAFONICE os assuntos culturais. No Dia da Cultura, o govêrno preocupa-se com o episódio Pelé. Desde o despontar do dia até o instante em que as tertúlias encerravam atividades - Pelé foi vedete. E Rui Barbosa fazem paz no túmulo.

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O NOBRE professor Pedro Vasconcelos Filho encaminhou-me diploma de Honra ao Mérito do MOBRAL NACIONAL, concedido "pela participação no processo de erradicação do analfabetismo, contribuindo assim para o desenvolvimento de sua comunidade e para a promoção do Homem Brasileiro". Diploma assinado pela figura exponencial do padre Felipe Spotorno, Secretário Executivo do Movimento Brasileiro de Alfabetização. Conheci-o em Brasília ano passado. Guardo do padre Felipe impressão magnífica. Impressão da sua fé, da sua coragem cívica, do seu amor à causa que lhe confiaram. Não sei se mereci a diplomação. Tenho, porém, consciência tranquila de haver contribuído para o trabalho do MOBRAL no Piauí, solidário sempre com êsse combatente do bom combate, Pedro Vasconcelos Filho.

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Em mensagem à Assembléia Legislativa, escreveu o governador Alberto Silva: "Lembrando que, praticamente, todos os Estados do Norte e Nordeste e todos os Estados da União já possuem, ou estão em fase adiantada de programação e construção dos seus Estádios Estaduais, não poderia o govêrno, preocupado em reformular conceitos e integrar efetivamente o Piauí na nova mentalidade implantada no Brasil pelo Governo da Revolução, deixar de tomar a corajosa iniciativa que se propõe". OBSERVAÇÃO: A CORAJOSA INICIATIVA nada mais é do que a construção do ALBERTÃO, estádio para sessenta mil pessoas, numa cidade que tem pouco mais de duzentos mil habitantes. Duvido que seja MENTALIDADE revolucionária o desperdício de dinheiro com elefantes brancos, com estádios faraônicos. Só o terreno, quinhentos mil contos, pertencente a deputado federal da ARENA. Projeto da monstruosidade: seiscentos e quarenta mil contos, pagos a uma firma mineira, entusiasmada de tanto dinheiro. Engana-se o ilustre governador ao afirmar que todos os Estados possuem ou estão programando estádios de futebol, principalmente estádio tipo pêso-morto, infalivelmente deficitário. Não possuem estádios estaduais nem os programando ou construindo: Acre, Pará, Maranhão, Paraíba, Espírito Santo, Estado do Rio, Paraná, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul. O grande estádio Beira rio de Pôrto Alegre, é particular, e o único que se vem autosustentando por tudo que ali se vende é fabricado pelo clube Internacional.  Comentário do dito Armando Nogueira, comentarista do Jornal do Brasil, demonstrou, numa série de artigos, que êsses espalhafatosos estádios oferecem prejuízos incalculáveis. Como o de Manaus (Tartarugão), o da Guanabara (Maracanã), o e Belo Horizonte (Mineirão), o de Aracaju (Batistão). A única vantagem que êles proporcionam - sustenta Armando - se relaciona com os governadores, que dão o nome aos tais bois. O ex-governador Castelo, do Ceará, iniciou o Castelão - e a triste herança passou a Cals. O sr. Aluisio Alves trombeteou o de Natal, batizado Aluisão, recebido pelo finado governador Gurgel (sacerdote católico). E lá se encontra inacabado o pomposo elefante. O de Maceió, o Pelezão, dá tanto prejuízo ao govêrno que o governador das Alagoas deseja livrar-se dêle por qualquer preço, segundo me confessou Rodrigues Filho. Observe-se que o Estado da Guanabara tem população metropolitana de mais de sete milhões de habitantes, grande parte louca por futebol, com torcidas organizadas, e o Maracanã vive quase sempre sêco. Lotação do Maracanã: cento e cinquenta mil pessoas para a população referida, enquanto aqui, nesta Teresina grávida de problemas - de pauperismo aviltante -, população de duzentos mil, se pretende um estádio para sessenta mil pessoas, em bairro distante. quem vai lotar essa praça faraônica? O futuro dirá de que lado se encontra a razão. E haverá necessidade de que se apurem responsabilidades.

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Prometi, no jornal de domingo, algumas considerações a respeito da literatura piauiense. Faltou-me tempo. Fica o assunto para quinta-feira.




In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 21 dez. 1971.   

sábado, 13 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (182)

Eis resumo dos acontecimentos da célebre Batalha do Jenipapo. Dos antecedentes e da própria Batalha. Fiz o levantamento depois de esforçada consulta a autores de boa cepa. De mim, apenas o trabalho de leitura atenta e demorada. Os estudiosos que corrijam falhas e supram lacunas.

ANTECEDENTES

I - Em abril de 1821, D. João VI deixava o Rio de Janeiro e regressava a Portugal. Os negócios do país ficaram com o filho, príncipe D. Pedro.

II - Já em abril de 1822, em Oeiras, o brigadeiro Manuel de Sousa Martins abraçava a causa separatista entre Brasil e Portugal. Campanha surda. Conspiravam-se nas fazendas, por tôda parte. Sucederam-se os pasquins, em Oeiras, Campo Maior e Parnaíba. Instigando o povo contra os portuguêses.

III - Dia 8 de agôsto de 1822, chega a Oeiras o sargento-mor João José da Cunha Fidié, Comandante das Armas. Empossou-se no dia seguinte, para escrever uma das maiores páginas da nossa História.

IV - Em Parnaíba, a campanha separatista era comandada por Simplício Dias da Silva.

V - Em Campo Maior, estava à frente da campanha Lourenço de Araújo Barbosa, logo chamado a Oeiras.

VI - A 19 de outubro de 1822, foi proclamada, em Parnaíba, a Independência do Piauí, por Simplício Dias da Silva, João Cândido de Deus e Silva, Domingos Dias, José Ferreira Meireles, Bernardo Antônio Saraiva, Ângelo da Costa Rosal, Bernardo de Freitas Caldas e Joaquim Timóteo de Brito.

VIII - Fidié segue para Campo Maior, onde pretendia estabelecer o centro das operações, e sufocar o movimento independente de Parnaíba.

IX - Viagem penosa a do Comandante português. Não havia chuvas. Nada se prestava à alimentação do gado. Sêca desoladora. De árvore a carnaubeira. Êsse o cenário que a tropa de Fidié encontrava na longa caminhada. Depois de léguas e léguas - uma casinha, de que fugiam para os matos os habitantes. Os soldados saqueavam essas habitações e deixavam-nas em miseráveis condições. Rios esgotados. Não havia água. A 25 de novembro de 1822, Fidié avista a cidade de Campo Maior.

X - O Comandante português delibera seguir para Parnaíba. Sabedores do fato, os cabeças do movimento independente deixam a cidade e rumam para o Ceará. Fidié chega a Parnaíba no dia 18 de dezembro de 1822.

XI - Dia 24 de janeiro de 1823, o Brigadeiro Manuel de Sousa Martins proclama a independência do Piauí em Oeiras.

XII - Chegam ao Piauí fôrças do Ceará. Duas divisões. Uma comandada pelo Capitão José Francisco de Sousa; a outra, pelo Capitão de 2ª linha Luís Rodrigues Chaves. Esta última entrou em Campo Maior no dia 12 de fevereiro de 1823 (cem homens). A outra ficaria em Piracuruca. A divisão de Campo Maior possuía armamento quase imprestável, sem munição nem petrechos bélicos. Reinava em Campo Maior absoluto desrespeito à vida e à propriedade. Roubavam-se os bens dos portuguêses. Em Piracuruca, desertaram quase todos os soldados de José Francisco de Sousa. Reuniram-se aos índios e atacavam e roubavam sertanejos.

XIII - Em Parnaíba, Fidié tivera tempo bastante para disciplinar a sua tropa e receber material bélico do Maranhão.

XIV - Começam a desertar os soldados da divisão cearense de Campo Maior. A sêca chegara ao período mais agudo. Saqueavam-se igrejas. O Comandante da divisão de Piracuruca deu parte de doente e foi embora. Houve deserção total.

XV - Não chegava o auxílio que se prometeu, do Ceará, aos homens que se encontravam em Campo Maior.

XVI - Dia 1º-3-1823, com mais de mil homens, Fidié marcha rumo de Piracuruca. Entrou sem disparar um tiro. Continuava sêca terrível.

XVII - Leonardo de Carvalho Castelo Branco estêve em Campo Maior e aquartelou-se na fazenda Melancias. Foi preso e remetido para Lisboa.


XVIII - A prisão exacerbou ânimos. Fidié aproximava-se de Campo Maior. Depois de abandonar Piracuruca, o Capitão João da Costa Alecrim aquartelou-se no Estanhado (União). Luís Rodrigues Chaves, por intermédio de emissário, com êle entrou em entendimento. Reuniram-se a Alecrim o baiano Salvador Cardoso de Oliveira e seu irmão Pedro Francisco Martins.

XIX - Alecrim segue para Campo Maior com a tropa de Salvador. Marcha cansativa. A Campo Maior chega também o Capitão Alexandre Nery Pereira Nereu, com soldados do Ceará.

XX - Luís Rodrigues Chaves convocou o povo. Do vaqueiro ao roceiro todos se apresentaram. Perto de dois mil homens, formados frente à Igreja de Santo Antônio.

XXI - Poucas espingardas com os cearenses. Os piauienses conduziam velhas espadas, facões, machados e foices.

A BATALHA

XXII - Dia 13-3-1823. A tropa, cedo, seguiu para o Rio Jenipapo, que forçosamente, srria atravessado por Fidié. Terreno plano. Junto às margens do rio, arbustos. Os brasileiros ocultam-se no leito sêco do rio e muitos nos arbustos das ribanceiras. Nas proximidades da margem direita, a estrada repartia-se em duas: Alecrim e Chaves guardariam ambas. Mas no ponto de bifurcação, Fidié dividiu as fôrças em duas alas. Uma, da cavalaria, seguiu pela entrada da direita; a outra, da artilharia, comandada por Fidié, seguiu pela esquerda.

XXIII - Primeiro encontro com a cavalaria, fortemente repelida pelos cearenses. Os portugueses retrocederam e fugiram. Os brasileiros passaram a examinar se deviam perseguir a cavalaria portuguesa. Enquanto isto, Fidié passou o Jenipapo, escolheu lugar, dispôs as tropas. Esperou o ataque. Os brasileiros partiram precipitadamente e foram alvejados com onze peças de artilharia. Desigualdade de fôrças.

XXIV - O recurso era atacar os portuguêses ao mesmo tempo por todos os lados e separá-los. Houve tentativa, logo repelida. Outra. Também repelida. Outros ataques com grande perda de vidas. A fuzilaria e as peças varriam o campo. Muitos morriam à boca das peças. Dominou-os o cansaço. As armas caíam-lhes das mãos. Não combatiam mais. Buscavam a morte.

XXV - O combate durou das nove da manhã às duas horas da tarde. Às duas horas começou a retirada, em desordem. Não estava Fidié em condições de perseguir os fugitivos depois de cinco horas de combate, sob sol ardente.

XXVI - Não se sabe o número de mortos de Fidié. Os seus soldados foram reunidos em cinco sepulturas. Calcula-se em dezesseis os mortos. Sessenta feridos. Mais de quinhentos brasileiros aprisionados. E mais de duzentos, entre mortos e feridos.

XXVII - Fidié tratou de abandonar o campo de luta. Era necessário ocupar Campo Maior. E Fidié para isto se preparava quando o avisaram de ter sido roubada parte de sua bagagem de guerra: munições, armas, dinheiro e os despojos de Parnaíba. Era loucura marchar contra Oeiras. Ficou Fidié a uns dois quilômetros de Campo Maior.

XXVIII - Começam tropelias em Campo Maior. Vários portuguêses foram assassinados. Dia 16 de março, Fidié seguiu para o Estanhado (União). Daí, para Caxias.

XXIX - Dia 25 de março, chegaram ao Mocha (Oeiras) os homens de Alecrim, Salvador, Rodrigues Chaves e Pedro Martins.

CONCLUSÃO

A luta no Piauí decidiria a unidade brasileira. A iniciativa coube ao coronel Simplício Dias da Silva, rico e viajado. Sôbre os destroços da sua riqueza, edifica-se a unidade da pátria. A obra de Simplício foi gigantesca. O Norte era autêntico satélite de Portugal. No Sul, a Independência foi aplauso e festa. No Norte, fome e peste, sangue e morticínio. Jenipapo foi carnificina pavorosa.



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 7, 21 nov. 1971.

domingo, 7 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (181)

NO ENSAIO de Celestino Sachet - "Fundamentos da Literatura Catarinense", de muita lucidez, encontrei referência a Péricles Prade - poeta, contista, crítico, sociólogo, jurista -, que Sachet situa numa das "ilhas" literárias de Santa Catarina, a ilha do homem urbano, com esta referência: "Hoje, Péricles Prade mergulha em experiências com o surrealismo policial-literário". Leio agora "Os Milagres do Cão Jerônimo", coleção de contos que muito projetou Péricles Prade na minha imaginação. Com a leitura, senti que são verdadeiras e honestas as observações de Jomard Muniz de Brito: há, no Brasil, impasse entre o artista e o público. Neste país é difícil o diálogo entre o artista e o público, pois o artista realiza uma coisa mental, daí a necessidade de conhecer as regras e os meios do seu trabalho. Não se compreende a obra literária sem o conhecimento da história e da sociologia da cultura. Santa Rosa foi muito percuciente quando escreveu: "A escola tem, pois, hoje, um papel de excepcional importância na direção artístico-espiritual do povo. As artes exigem conhecimento e a escola deve ministrá-lo completamente. Ao lado do ensino do que se deve fazer, é uma necessidade ensina a ver". Eu acrescentaria: ensinar também a ser, uma vez que, no caso, não se compreendem as mensagens de "Os milagres do Cão Jerônimo" sem orientação estética. Concepções quase [de] irrealidade. Exaltação do subconsciente, como queria Freud - versão literária do mundo subconsciente, primário e irracional. Automatismo psíquico puro, de Bréton: "Automatisme psychique pur par lequel ou se propose d'exprimer... la pensée em l'abscence de tout contrôle exercé par la raison, em dehors de toute preocupation esthétique ou morale".

Leia-se esta pequena obra-prima do livro de Péricles Prade:

"Com o demônio nos olhos, a magra mulher lança-se um olhar guerreiro. Começo a percorrer as arquibancadas, impressionado, irritando-me com o vendedor de agulhas que insistia na leitura de um poema imoral. Na corrida, imprimindo incrível velocidade, esbarro numa velha senhora que, perto do poço localizado à entrada do túnel, com fino chicote bate nas costas de um belo animal. O sangue cobre os azulejos e eu me sinto feliz. Na décima quinta volta o cavalo de crinas verdes levanta vôo, planando alegre e descrevendo nos céus complicada lição de alquimia. Um senhor baixo, que se encontrava sentado, retirou de uma pasta negra [um] vincado papiro, anotando apressadamente as fórmulas. Levanta-se e, antes de se perder na multidão, diz com estranha simplicidade: - Não autorizei a exibição. Hoje haverá morte no meu exército de cavalos alados". (Conto "No hipódromo").

Admirável estulto conto ("O tapête indiano"):

"Todas as manhãs, invariavelmente, a prostituta batia no tapête indiano. Despedia-se dos conhecidos amantes, arrumava a cama com doentia organização e o passava nas mãos, esmurrando-o com fúria incontrolável. Diziam as vizinhas que ela o espancava de forma comovedora. Como vingar-se? o tapête esperava por uma oportunidade, mas não surgiam as condições. Era pôsto sôbre o chão ou pendurado na cêrca. Desprestigiava-o o fato de ter parado na zona de prostituição, de origens tão indignas. Passaram-se os anos. Mais velho o tapête, mais velha a prostituta. Inúmeras as mudanças, perspectiva de fatal decadência. Agora a ruína eterna, a podridão maior, a impossibilidade de existir. Eis a prostituta: animal, verdes as pelancas, equilibrada na lembrança dos ossos adolescentes. Estamos no inverno, brutal a geada cobrindo os pastos, as paisagens européias nas retinas, renascidas. Não há mais camas, nem sujos lençóis de tão amados calores. O tapête sob o braço esquerdo, caminha a prostituta, amparando-se nos muros, caída agora, pálida-cansada. Que estranho o olhar do tapête indiano! Bastou Adriana encolher as pernas, cerrar as pálpebras, para envolver-se, rápido, no pescoço. Apertou aos poucos, esbugalhados os olhos, enigmático o sorriso dentro da noite. Enrolou-se e fugiu, aproveitando a escuridão para enfiar-se no mais próximo esgôto, à beira da calçada".

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Todos os contos de Péricles são mensagens de desespêro ante as incompreensões de um mundo [de] quase escuridade. Mundo de paixões e vícios divinizados, de espírito demoníaco, de sentimento do incontrolável, de misteriosa angústia frente a fôrças malignas. As mensagens impregnam-se de realismo mágico, de mitologismo, de satanismo. Em tôdas, o misterioso e o fantástico do surrealismo.

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Leiam-se as concepções de Prade nos dois contos transcritos e nos outros que compõem "Os milagres do Cão Jerônimo". Fantasias? Admita-se, mas como fantasia-análise para o autoconhecimento do homem. A superior inteligência de Péricles mostra, pela fantasia, os efeitos patológicos que se desenvolvem quando o homem se encontra na presença de situações que não pode vencer por meios conscientes, da forma que ensina Jung.

Linguagem fluente, asseada, simples, cativante, de quem conhece a técnica da boa e expressiva escritura, Péricles Prade é sobretudo um conhecedor da alma humana, exemplo de artista moderno na execução de trabalho de educação psicológica sôbre o público. Tira sua fecundidade do mito, que será a fonte de tôda a criação futura. Os seus contos constituem aquêle sintoma e aquêle símbolo que os estudiosos consideram uma maneira de destruição e de renascimento do mundo: maneira que se faz sentir política, social e filosoficamente. Péricles Prade está vivendo no TEMPO CERTO (dos gregos) "para uma metamorfose dos deuses, isto é, dos princípios e símbolos fundamentais". Comentando esta transformação dos princípios e símbolos, o autor de "O eu desconhecido" escreveu estas palavras proféticas, que bem se aplicam às concepções de Péricles Prade: "Esta peculiaridade do nosso tempo, que com tôda certeza não é de nossa escolha consciente, é a expressão do homem inconsciente que dentro de nós está mudando. As gerações vindouras terão de tomar em consideração essa importante transformação, se a humanidade não se destruir a si mesma com os próprios recursos de tecnologia e ciência".


In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 5, 7 dez. 1971.

sábado, 6 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (180)

COPIO da revista "Geografia Ilustrada", recentemente editada: "O Piauí representa sintomas típicos de região subdesenvolvida, seja qual for o diagnóstico empregado. Grande participação do setor primário na composição da renda interna, pouca industrialização, grande concentração populacional na zona rural, baixo consumo de energia elétrica. Em 1969, quando a renda per capita do Brasil era estimada em mais de trezentos e cinquenta dólares, a do Piauí não chegava a sessenta. Considerando apenas o Nordeste, ainda assim ela é duas vezes menor do que a de Sergipe, por exemplo. Mais expressivo do que qualquer indicador econômico, entretanto, é o próprio nível de vida do povo". E acrescenta a revista: "Na zona rural a alimentação geralmente se compõe de café matinal, acompanhado de um pedaço de pão e beiju de tapioca. A segunda refeição costuma ser à base de carne-sêca, feijão, farinha de mandioca e milho. Esta dieta, de baixo teor de proteínas, não basta para o duro trabalho no pastoreiro ou na lavoura. O resultado é a subnutrição, tornando o organismo vulnerável a quaisquer doenças. O nível educacional acompanha o que ocorre na maioria dos Estados nordestinos, com o analfabetismo secundado por altas taxas de evasão escolar. O problema é agravado no campo, onde o calendário escolar coincide quase sempre com o período das colheitas". OBSERVAÇÃO. Eis aí o quadro que não me canso de mostrar e demonstrar. Enquanto isto se passa, vive-se nesta terra de festas e da construção de obras suntuárias. Teresina é a cidade dos clubes e das tertúlias e dos natais dos pobres. Há mais clubes em Teresina do que sapo na fonte luminosa da praça de São Benedito.

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O PRESIDENTE Acióli, da Cepisa, deve, com urgência, liquidar abuso que se vem praticando. Abuso, só, não. Extorsão. Pois a Cepisa está cobrando TAXA DE RELIGAÇÃO sem desligar a luz da casa do depenado contribuinte. Cobra-se a taxa por serviço público que se presta. Se a luz NÃO FOI RELIGADA, como é possível a cobrança do tributo de religação?

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CARTA de José Marques de Oliveira, de 6.12.71: "Caro mestre. Solicito seu comentário a respeito das alterações introduzidas no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguêsa de 1943, pelo acôrdo assinado em 22.4.71 pela Academia Brasileira de Letras e pela Academia das Ciências de Lisboa, cuja matéria se encontra na capa do primeiro volume do Pequeno Dicionário da Língua Portuguêsa Ilustrado, publicado em fascículos pela Abril Cultural". OBSERVAÇÃO. Muito admiro a José Marques de Oliveira, pelo interêsse que êle devota a assuntos de cultura e de educação. Ainda não li o acôrdo. Não sei se o govêrno o aprovou. A revista "Manchete" escreveu que está sendo redigida de conformidade com as alterações aprovadas. Lendo a revista e observando as normas de redação, verifiquei que o acôrdo determina supressão de acentos gráficos em três casos: o chamado acento diferencial (EMPRÊGO, substantivo, e EMPREGO, verbo). Como se sabe, o acôrdo de 1943 rezou que êsse acento diferenciava a pronúncia aberta e fechada das palavras de escrita idêntica (homográficas). Outro caso: abolição do acento grave e circunflexo dos advérbios terminados em MENTE. Pela reza de 1943, êsses advérbios têm acento grave quando derivados de adjetivos com acento agudo: pálido - pàlidamente. E têm acento circunflexo quando derivados de adjetivos com acento circunflexo: cômoda - cômodamente. Terceiro caso: o nôvo acôrdo manda suprimir o acento grave e o circunflexo dos derivados em que aparece a letra Z como consoante de ligação. às vezes o sufixo se liga ao primitivo por consoante de ligação. Se o primeiro possui acento agudo ou circunflexo na última sílaba, há necessidade de ligar o sufixo por consoante: de CAFÉ, por exemplo, se faz CAFETEIRA. O sufixo é EIRA. Mas a consoante de ligação não foi o z. Então, no derivado desaparece o acento da palavra primitiva. Veja-se cafèzal. Sufixo, AL, ligado pelo z. Aí, no derivado, o acento agudo de CAFÉ passa a grave no derivado. Observe-se avôzinho. Sufixo INHO ligado por z. No derivado conserva-se o circunflexo de AVÔ. E mais: o nôvo acôrdo manda abolir o trema, em qualquer caso. Gostei das alterações. Muito simplificam a escritura. De parabéns os jovens escolares, que sempre tropeçavam na utilização dêsses sinais. Ainda não estou prestando obediência a tais normas porque desconheço a sua oficialização.

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Asseguram-me que alguns altos auxiliares do governador Alberto Silva residem em casas cujos aluguéis são pagos pelos cofres públicos. Aluguel de dois mil contos mensais (dois mil cruzeiros). Verdadeira INDÚSTRIA esta de aluguel de prédios residenciais à administração. Há proprietários que deixam as suas residências próprias e passam a alugar casa alheia, na base de trezentos ou quatrocentos mensais, enquanto pela sua o govêrno paga de mil e quinhentos a dois mil. Negócio rendoso. Se verdadeira a informação que me deram, acredito que o critério do governador Alberto Silva golpeará tal INDÚSTRIA.

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Ouvinte de programa de rádio que realizo pergunta-me se o inspirado e talentoso poeta Carlos de Oliveira Neto (piauiense) é parente de Rui Barbosa (Rui Caetano Barbosa de Oliveira). Acho que sim. Neste país todos são parentes. Mistura dos safados colonizadores portuguêses, de índio e de negro. Manuel Bandeira teve essa visão "tanto em face do passado que se evoca quanto em relação ao presente que se admira". Leiam pedaços do poema NÃO SEI DANÇAR:

"Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí porque vim assistir a êste baile de
                                     Terça-feira gorda

Mistura muito excelente de chás...
Esta foi açafada...
Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!
De fato êste salão de sangues misturados parece o Brasil".

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Uma velha cantiga brasileira diz também que TODOS NÓS SOMOS FIDALGOS DUMA BANDA SÓ. Deu-se o negócio com um sujeito chamado Nogueira. Salafrário. Criminoso. Ladrão. Pai fidalgo e mão mulata. Amaro Joaquim, governador da Paraíba, desejava condená-lo à morte. Mas o pai de Nogueira era fidalgo. A mãe, porém, mulata. Resolveu o governador que o patife recebesse chicotadas no pelourinho, como escravo. E mandou açoitá-lo só pela metade, pela metade de mulataria materna. Estória contada por Koster. Referindo-se à decisão do governador Amaro Joaquim, escreveu o saudoso Gustavo Barroso: "Os inúmeros réus de nossa República bem andam precisados dum Amaro Joaquim em miniatura. Acabaram-se os privilégios da nobreza, e do sangue dela não resta mais uma gota nas veias dessa gente que anda por aí... Dos altos sentimentos da velha fidalgaria também nada mais resta... E os fidalgotes do nosso regime hoje em dia não têm mais valor algum que os salve. Grande falta faz um Amaro Joaquim que enèrgicamente os desembuce, arrancando-lhes os capuzes negros da hipocrisia com que come tem as maiores vilanias, que os leve ao pelourinho infamante da praça pública e, pela mão soez e possante do algoz, os faça açoitar, não dum lado só, como ao bastardo réprobo dos Nogueiras, porém dos dois lados, que ambos nessas figuras de juripedantes simulados, de advogados administrativos ladravazes, de negocistas e de tartufos, são absolutamente indignos de qualquer consideração e ignóbeis por natureza".    




In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 12-13 dez. 1971.   

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (179)

MENSAGEM natalina que mandou Félix Aires: "Dlam, dalam, delém, delém! Boas-festas de Natal, ajuda ao que te quer bem, perdoa ao que quer mal".

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LEIO que será realizado um curso de turismo em Teresina. Agente pensando bem, há de considerar interessante a promoção. Os cursistas pelo menos aprenderão que o Piauí não tem condições turísticas. Puxando muito, as montanhas das Sete Cidades. Solidão. Muito periquito. O hotelzinho que o govêrno federal (Nonato Medeiros) construiu. Haroldo Amorim poderia aplicar a inteligência nobre noutras atividades. Turismo no Piauí é como lobisomem: fantasia.

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O PIAUÍ sempre viveu de febres. Febre do couro. Civilização do couro. O gado. Como a borracha do Amazonas. Os amazonenses construíram um dos teatros mais bonitos do mundo. O teatro de Manaus serve para tudo, mas lá não se representam peças teatrais. Depois houve aqui a febre da cêra. Abandonou-se tudo. A cêra da carnaúba engordou muito espertalhão. Febre, em Teresina, de clubes. Clubes vazios de gente e de objetivos. Febre de estádios. Cada biboca interiorana clamava por um estádio de futebol. E haja estádios. Habitados de bichos. Muito dinheiro jogado fora. Veja-se o campeonato intermunicipal de futebol de 1971. Disputado por sete municípios, apenas: Regeneração, Altos, Parnaíba, Água Branca, Elesbão Veloso, Amarante, Piripiri. Em Teresina há um Jóquei Clube sem jóqueis e sem cavalos. E um teatro de arena: seda da banda de música municipal.

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O puxa-saquismo caboclo (deputados) propôs que se desse o nome de Alberto Silva a uma estrada em Parnaíba. Palmas gerais. Projeto aprovado. Mas o chefe do Executivo não quis a homenagem. Vetou a decisão dos deputados. Achou que tais homenagens se justificariam depois de uma avaliação da obra governamental, e esta não existia ainda por falta de tempo. Acrescentou que a estrada não está concluída, portanto não é necessário batizá-la agora, antes de inaugurada. Alberto passou pito sério aos homenageantes. Exerceu atitude correta. E o caso do "Albertão"? Como é que já recebeu o nome do parnaibano ilustre se não foi iniciado?

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DEIXEI verba federal para construção de um grupo escolar em Parnaíba. Oito salas. Quantia: cento e sete mil e seiscentos e quinze cruzeiros. Soube que o grupo custou cento e setenta mil.

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Consulta de quem se assinala Karla: "Na frase NÃO DÊS IMPORTÂNCIA A ISSO, o verbo está no subjuntivo ou no imperativo negativo? Estabeleça a diferença". OBSERVAÇÃO. Está no imperativo negativo. Caso de proibição. Usa-se o subjuntivo para exprimir desejo, súplica, dúvida. Rigorosamente o subjuntivo se destina a assinalar que o processo é apenas admitido em nosso espírito e, portanto, possível de dúvida, como registra Matoso Câmara.

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ESTUDO sério o dos veterinários Carlos Hubinger Tokarnia, Jerome Langenegger, Charlotte Hubinger Langanegger e Edson Veras de Carvalho: "Botulismo em Bovinos no Piauí". Exposição clara, metódica, linguagem correta. Os autores demonstram, seguros conhecimentos científicos do assunto de que tratam e prestam valioso serviço ao Piauí. Esclarecem os ilustrados técnicos: "O botulismo em bovinos manifesta-se como doença epizoótica em regiões geográficas com acentuada deficiência de fósforo. Os animais procuram suprir a falta dêsse mineral na alimentação através da ingestão de ossos de cadáveres. Esta necessidade orgânica leva os bovinos ao curioso hábito de roerem ossos. É um dos sintomas da afosforose dos bovinos". Revelam em seguida resultado de observações. "A doença ocorre em bovinos criados e mantidos no Estado do Piauí, em regiões conhecidas por agreste em que predomina vegetação pobre, constituída mormente de arbustos e árvores baixas, mas a maIor incidência tem ocorrido nos chamados campos do capim mimoso penacho do Município de Campo Maior". Salientam mais os ilustrados veterinários: "O mais impressionante, nestas regiões, é ver o grande número de bovinos roendo ou chupando ossos de cadáveres de bovinos ou outros animais". E noutro trecho: "O gado criado e mantido nestas regiões apresenta crescimento lento, a carcaça dá pouco rendimento, a produção de leite é pequena, as vacas não são precoces e dão cria de dois e dois anos, decaindo muito o seu estado geral no período da lactação. São frequentes as fraturas de osso". Advertem os autores, noutro ponto: "A doença é observada no município de Campo Maior, como uma nova entidade mórbica, desde 1960, e nos municípios mais ao sul do Piauí (Guadalupe, Floriano, Itaueira e Nazaré do Piauí) é registrada a partir de 1964".

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Alguns auxiliares da administração residem em prédios luxuosos, aluguel pago pelos cofres públicos, na base de mil e quinhentos a dois mil cruzeiros mensais. A isto não se pode chamar honestidade. Urge corretivo por parte do Chefe do Executivo.

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Deixei verba de Cr$ 101.500,00 para a construção de um grupo escolar em Picos. Os jornais publicaram que recentemente, o prefeito daquele município levou sete mil cruzeiros, adiantadamente, para começar a obra. É irregular o adiantamento. Proibido pelo Ministério da Educação.

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[Apagado no original] Revelação de Paulo Guerra, Dinarte Mariz e de representantes do Ceará e do Maranhão. Enquanto isto ocorre, atiram-se fora, no Piauí, milhões de cruzeiros com a construção de um estádio de futebol, de luxo, para sessenta mil pessoas. Extravagância. Terreno adquirido por quinhentos mil contos. Transação com um deputado federal. Uma firma mineira, ligada a empreiteiros do govêrno, encheu o papo. Carregou do sangrado Piauí mais de seiscentos mil contos pelo projeto do estádio faraônico. Parece cousa de rajá ou do xá da Pérsia. Enquanto isto, angaria-se dinheiro para o natal dos pobres e mulheres esquálidas e meninos de cara chupada estendem, pelas ruas, latas sêcas de goiabada, na cantinela da esmola pelo amor de Deus.

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Gerardo Almeida, ex-vereador de Teresina. Nome que se consagrou na minha admiração e no respeito da coletividade que êle, na assembléia municipal, dignificou. Tive-o, faz alguns anos, como aluno. Sério, estudioso, de superior elegância espiritual. Na Câmara, foi corajoso, testemunhando forte personalidade de ideias e de convicções. Se fôr candidato em 1972, voltará fàcilmente a ocupar pôsto por êle persistentemente honrado, e do qual saiu de cabeça erguida, pois não quis, hora alguma, ser corrompido.

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O jovem e competente engenheiro Murilo Resende, secretário de Obras Públicas, anunciou que vai fazer da avenida Frei Serafim a avenida mais bonita do Nordeste do Brasil. Para que isto? Teresina é cidade paupérrima. Bairros abandonados. Sujidade por todos os lados. Mendicância. Problema social aflitivo do menor abandonado. Séria concentração de meretrício. Sentinas de buracos em quase tôdas as residências. Pequena rêde de esgôto. Escuridão. A avenida contará com seis fontes luminosas. Uma cousa monarca de bonita, como diria o caboclo boquiaberto, postado numa das esquinas dessa nova obra de consumir dinheiro. Teresina necessita de tornar-se humana, de solução dos graves problemas que a angustiam e intranqüilizam. Nunca de fachadismo, de suntuosidades, de luxentas construções. Urbanismo não é luxo. Urbanismo corresponde ao funcionamento racional de todos os processos de vida da comunidade.



In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 6, 16 dez. 1971.