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domingo, 2 de novembro de 2014

CADERNO DE ANOTAÇÕES (192)

DETERMINAÇÃO de Karla: "Faça a diferença entre metáfora e metonímia". Lição dos mestres: metáfora é a figura de linguagem que consiste na transferência de uma palavra ou expressão para âmbito de significação que não é o seu. Exemplo: "O último ouro do sol morre na cerração". A metonímia - dizem os doutôres - consiste na ampliação do âmbito de significação de uma palavra ou expressão, partindo de uma relação objetiva entre a significação própria e figurada: "tocam os bronãe" (os sinos); "cidade de cem mil almas" (pessoas). Veja Karla o seguinte: na metáfora a relação é subjetiva, estabelecida pelo espírito.

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O governador Alberto Silva, no projeto criador da Fundação de Assistência Geral aos Desportos do Piauí (FAGEP), correspondente ao ALBERTÃO, propôs aos deputados este parágrafo: "Consideram-se aprovados e ratificados todos os atos e despesas efetuadas até a presente data pelo secretário de Obras Públicas, para a constituição do Estádio de Teresina". Assembléia, contra os votos do MDB, aprovou a proposta do governador. Cousa nunca vista: antes de ser aprovada a construção do Albertão, já se gastava por conta do referido. Os deputados da ARENA aprovaram despesas por antecipação sem que soubessem ao menos em que foram gastos os dinheiros, sem que soubessem a quanto montavam tais despesas. Teratologia. No mesmo dia da votação e aprovação desse estarrecedor parágrafo, fiz protesto. Mostrei os aleijões dessa legislação. Pois bem. Num gesto de sensatez e de reflexão, o governador do Estado VETOU o parágrafo estapafúrdio.

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Karla escreve: "Fale das principais figuras de sintaxe". Observação. A nomenclatura gramatical brasileira adota quatro figuras de sintaxe: elipse, silepse, pleonasmo, anacoluto. Ensinam os mestres: anacoluto (frase quebrada) se dá quando a uma palavra ou locução, apresentada inicialmente, se segue uma construção oracional em que essa palavra ou locução não se integra, exemplos: "As flôres... os pássaros... os córregos límpidos... Passei muito anos a admirar belezas do meu sítio natal". ELIPSE é a omissão, na frase, de têrmo presente em nosso espírito. Exemplo: "Viajei muito por terras estranhas" (omitiu-se o sujeito). PLEONASMO corresponde à repetição, com um têrmo determinante, da significação que já está implícita no têrmo determinado. Exemplo de Amador Arrais: "Onde há vergonha e honra, não se pode afirmar, senão o que se vê com os olhos ou se ouve dos dignos de fé". SILEPSE. Relacionamento de um elemento da frase ao que está implícito em nossa mente, em vez de pô-lo em referência estrita com o que está realmente expresso. Exemplo: "Vendo ali o seu cuidado, vestida da própria roupa" (cuidado, masculino, e vestida, feminino. Cuidado aí é a mulher, a dama, o amor).

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Merece aplausos o governador e o secretário Macieira pelo pagamento, antes do Natal, dos vencimentos de novembro e dezembro ao funcionalismo. Mas é necessário corrigir injustiças. No govêrno Helvídio Nunes, houve pagamento de novembro no principio de dezembro, e pagamento de dezembro antes do Natal. Da mesma forma se verificou em 1970, administração Clímaco de Almeida.

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Vindo de Londres, a professôra Ercília Freitas, aperfeiçoada em assuntos educacionais, trouxe-me mapa da Inglaterra de 1579. Magnífica lembrança.

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Li muita coisa a respeito da celebrada Batalha do Jenipapo (Campo Maior). Batalha da unidade nacional. Fiz resumo dos antecedentes dêsse episódio histórico (13-9-1923). Luta de cinco horas (nove da manhã a duas da tarde). Descrevi a batalha. Os processos estratégicos dos dois lados (brasileiros e portuguêses). Publiquei o trabalho nesta coluna. Pretende o governador Alberto Silva pagar dívida: monumento aos bravos da Batalha de Jenipapo. Grande ideia. Merece o governador apoio de todos os piauienses. Faz poucos dias aqui estêve o arquiteto Rui de Lagos Cirne, de Minas. Jovial, inteligente, de agradabilíssima palestração. Fomos os dois - eu e êle, naturalmente - a Campo Maior, ao local exato da Batalha, margens do Jenipapo. Mostrei-lhe tudo. Vai projetar o monumento cívico. Alberto Silva pagará dívida de honra, tenho certeza. Construirá o monumento para que contemporâneos e porvindouros se honrem, séculos afora, da bravura dos que contribuíram, decisivamente, para a Independência pátria e para a conquista da unidade nacional.

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Leio BRUXARIA NO PÉ DE FEIJÃO, de Maria Helena Coelho, jovem de 25 anos e já proprietária de personalidade invulgar no mundo das letras. a lucidez intelectual de Moacir C. Lope ("Maria de cada pôrto") disse de Maria Helena: "Maria Helena Coelho é êsse estado de loucura, o anjo caído buscando organizar seu próprio inferno, ela é o símbolo e síntese de milhões de jovens que procuram, cada um isoladamente e com seus próprios meios, organizar seu inferno particular como uma casamata para resistir ao inferno-global mcluhaniano. Poucos terão expresso com tamanha clarividência na sua loucura, essa caminhada caótica pela escuridão. É uma obra de arte êste BRUZARIA DO PÉ DE FEIJÃO". Bem salienta Moacir que Maria Helena simboliza e sintetiza milhões de jovens, num mundo em que a família não transmite cultura, em que os homens se tornaram superficiais, em que o poder industrial desespiritualiza a humanidade para torná-la escrava do prazer, do luxo, do erotismo, materializada, enfim. Linguagem viva, trepidante como a civilização da máquina, linguagem nova, nervosa como as personalidades das jogatinas e da uiscaria do século XX, linguagem atormentada, de ansiedade, linguagem-de-sabafo:

"Aí eu estou tentando, vocês perceberam, desde o começo do livro, mas a minha profecia é outra, eu juro que a minha profecia é outra, é de uma guerra muito mais significativa, eu sou é medieval, sabe, eu sou é entidade de floresta, eu sou é dos cabelos tristes, embora também de terra, mas uma terra de formação minha, muito qualificativa e sensorial de sentido meu, sabe, eu sou é disso, e lamento a ausência dos cavalos. X Eu gosto é de ver os cavalos encontrando as fêmeas, emboar me deixando, me deixando, embora eu no prejuízo, se mestrada, embora eu-ponte, embora eu-dona. X Mas a pacificação e a resignação também fazem parte de mim, quietando eu meu sangue na fervura um gôzo, abrandando eu a escada só o tempo, e a obrigação-degrau por degrau: só-a-guerra. X Compreenderei tudo que me fôr mostrado! X Compreenderei tudo de nôvo que me for mostrado. X Compreenderei a ausência do Júbilo, a maturação, o extermínio da Festa".

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Todo o livro de Maria Helena corresponde a uma posição diante da realidade, para o protesto, para a revolta, especialmente para a denúncia. Melhor: para a exposição. As angústias universais disseram PRESENTE: "Vi, depressão, depressão. X Bateu em mim e bastou. X Vi butiques de Copacabana. X Vi um carnevale. X E, na praia, chovia. X Estou louca, louca, desvairada e suja. Mas é preciso que saibam, sou uma mulher. X Suja como uma criança, mas sou uma mulher".

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Adiante, o drama psicológico do mêdo - o mêdo da solidão inquietante: "Deus bonito, me aquieta, para que eu não corra. X Nem fuja..."

E a intuição intelectual para o sentimento da atualidade nestoutro trecho, como que a fisionomia da mocidade na escuridão, tonteada, sem horizontes, na busca da felicidade artificial: "Quero... o que eu quero? X Meu deus, que lucidez incrível! X Botei deus com letra minúscula agora por lucidez. X Droga, que droga, mas eu quero a noite. X A noite não vem, há dias que quero. X Resolvi ser manhosa, vou até chorar. X Vocês querem me dar um mundo cheio de rosas, querem; Vocês querem cuidar um pouco ao menos de mim; vocês querem, por favor, me fazer dormir, querem? X Resolvi pedir. X Êsse o meu livro primeiro, e vocês deviam cuidar de mim. X Afinal eu peço tanto, e vocês não me dão nada".

O livro de Maria Helena vale o sofrimento do mundo como está. Obra de dimensão social. As inversões sexuais: "Na praia, eu estava um dia molhada, e a fúria era tanta guardada, que o menino que apareceu, eu amei; eu, uma mulher, fazer amor num menino...".

O drama da fome: "Há muito que deixei de andar com homens-intelectuais. X Eu agora ando com padeiros. X É que eu misturo alegria com vontade de ter pão em casa. E durmo com o homem que o faz. E amo com o homem que o traz".

Obra-prima de montagem da realidade: o espantalho da guerra ("OS meninos dormiam X E dormiam de couração X Porque não se sabia a hora X Da guerra"), a fome de dinheiro para a civilização de confôrto que a civilização da máquina atual ("As mãos suplicadas dos cobradores não são de ninguém: são dos agiotas - únicos de deuses, no setor"), a compreensão do outro lado da vida ("...desespêro que nascem com frustração do Sem-Natal") - ao cabo de contas a visão das agonias humanas, das imperfeições educacionais, da falta de horizonte e de luz para a caminhada total. Como bem definiu Moacir C. Lopes: "Mas em tôdas as peças que compõem êste livro, o eu-personagem está rodeado de outros personagens que necessitam ser desvendados, e se debatem e se angustiam na escuridão dessa imensa aldeia global, contaminada, além dos muros de nossos infernos particulares, pela poluição humana" - a poluição humana do ódio, da desconveniência, da educação para o prazer, do inumano - acrescento eu.    
          

In: TITO FILHO, A. Caderno de anotações. Jornal do Piauí, Teresina, p. 2, 25-16 dez. 1971.

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