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terça-feira, 1 de março de 2011

CADERNO DE ANOTAÇÕES (17)

CENSURA - De São Paulo, com data de 10-5-70, Clóvis Moura, o notável escritor nascido no Piauí, escreve-me assim:

Meu caro A. Tito Filho,

Um abraço.

Carta sua é sempre motivo de alegria, daí está lhe respondendo a que me chegou ontem datada 30/4. Você voltou a abordar o problema de censura prévia que está em discussão no Congresso. Inicialmente, como não poderia deixar de ser, você se coloca contra. Acha, porém, que deverá existir punições para os falsos que fazem comércio com o sexo. E dá como exemplo, para ilustrar o que diz, Henry Miller. Acha você que ele devia policiar mais a linguagem, ou colocar o palavrão na bôca da personagem, o que não acontece. Quando Miller assim procede deixa de reproduzir os episódios artisticamente. Ora, o que acontece, para mim, é que nisto exatamente reside a estrutura unitária da obra de Miller. A sua mensagem é desagregacionista e em função dela coloca a sua arte, não apenas através da escolha de uma temática de fundo sexual mas usando a própria estrutura lingüística para transmitir ao leitor o que deseja. Podemos discordar inteiramente da mensagem de Miller, e eu particularmente discordo. O que não se pode negar é que há uma função naquelas palavras consideradas palavrões que atingem o leitor exatamente naquilo que o autor deseja: o seu embasamento moral, a sua ética convencional. Por tudo isso é que acho que um escritor como Henry Miller não pode ser julgado apenas pelas palavras que usa, mas principalmente, pelo que existe além das palavras, ou seja, a sua cosmovisão, o mundo ideologico que êle procura impor aos seus leitores. A agressividade de Miller no que diz respeito à linguagem usada faz parte, portanto, de uma estrutura artística que êle montou para transmitir o seu desagragacionismo desesperado, procurando equiparar todos os valores convencionais, todas as normas de conduta e ação a um nível de coisa em dissolução. Vou citar um trecho para ver se me explico melhor. Diz êle em "Trópico de Câncer": "Há cem anos ou mais o mundo, nosso mundo, vem morrendo. E nem um só homem, nestes ultimos cem anos, foi tão louco que colocasse uma bomba no ôlho do cu da criação e o detonasse. O mundo está apodrecendo, morrendo aos poucos. Mas precisa do coup de grâce, precisa ser reduzido a pedacinhos por uma explosão".

Repare você a intencionalidade do palavrão para despertar o leitor e o sacudir para a sua mensagem catastrófica e pessimista. Funciona como uma colherada de alcatrão que o artista derrama na boca do leitor contra a sua vontade. Por isto mesmo, dentro da estrutura da obra de Miller, ele tem uma função. Se Miller policiasse a sua linguagem estaria negando que acredita naquilo que êle prega: o fim de todos os valores. Sua obra, por isto mesmo, apesar de toda a critica que desperta, ficará como documento de uma época de desespêro, quando os homens vivem sob a neurose de uma guerra nuclear, documento que demonstrará, quando outro fôr o quadro das relações humanas, como a arte é um reflexo da realidade social, refletindo tôdas as suas nuances: a negra e a branca.
Quando Dante colocou palavrões no 1º Canto da "Divina Comédia" o fêz exatamente para que o Inferno vivesse a sua realidade... infernal.

Sômente quando o artista nada tem a dizer, é vazio, é que apela para a pornografia (palavra aliás muito relativa e que pode ter significado muito elástico), ou seja, quando a sua intenção é apenas despertar no leitor a sensação de sexo, sem mais coisa para dizer. Aliás, você deve ter reparado que as descrições de sexo mais desbragadas em Miller não despertam no leitor sensualismo ou possibilita excitação. Pelo contrário. O leitor fica nauseado, porque Miller é, de fato, um dos grandes escritores cuja mensagem é a náusea universal.

Mas o perigo da coisa mão está aí, porque então ela ficaria restrita ao âmbito intelectual e entre nós tudo se resolve. O perigo está no direcionamento da censura. Não creio que haja perigo de dissolução da familia causada por livros, mesmo aquêles considerados pornográficos, isto porque num país de analfabetos como infelizmente ainda é o nosso, pouco ou quase nada se lê. E os leitores são sempre maiores de idade e de famílias relativamente abastadas. Daí não acreditar na falsa moral do sr. Plínio Salgado ao dar o seu parecer sôbre o assunto e pedir a censura prévia para os suplementos literários, como se lá estivesse o câncer da depravação dos costumes instalado. Você não acha? O conceito de arte depravada foi, aliás, muito usado por Hitler e suscitou a prisão, a morte e o desterro de centenas de escritores, pintores e escultores da Alemanha. Aqui a coisa está neste pé: serão os escritores responsáveis pela onda de dissolução que atinge, a olhos vistos, no mundo inteiro, uma juventude desesperada, sem horizonte, cuja perspectiva mais otimista é a guerra no Vietname e a mais pessimista o fim da civilização por uma guerra nuclear? Ou pelo contrário, não serão os falsos Catões, que não abrem o leque da esperança para esta juventude os responsáveis mais diretos e acham cômodo jogar nas costas dos escritores a responsabilidade por uma situação que nós não podemos controlar? É muito fácil apreender livros. Com isto salvaremos tudo, solucionaremos as causas profundas da prostituição, tão combatida mas tão aproveitada pelos falsos moralistas? Acho que não. Prefiro, como escritor, travar a luta com os falsos escritores, no plano intelectual. Não aceito, no entanto, que alguém que não tem as minimas condições de sensibilidade e de cultura diga o que é bom e o que é ruim. Prefiro correr o risco, com muito trabalho, aliás. Nós escritores é que temos o direito e o dever de, na luta pelo desenvolvimento da nossa cultura, dizer o que é bom e o que é mau. Temos critérios de valores objetivos para julgar as obras de arte. Não precisamos de tutores políticos, de políticos que não solucionam sequer os problemas... políticos...

Se todos os problemas que a sociedade atual enfrenta (inclusive a brasileira) fôssem solucionados através da apreensão de livros a coisa seria muito simples. Mas eu não acredito em soluções simplistas. Logo depois de 1937 foram queimados em auto de fé centenas de livros considerados pornográficos. E, por coincidência (?) o sr. Plínio Salgado, então às voltas com o Integralismo, foi quem liderou a queima. E sabe, meu caro, quais livros foram considerados pornográficos? Os de Gilberto Freire, as obras de Antropologia de Artur Ramos, os romances de Raquel de Queirós, Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, José Américo, Armando Fontes, e muitos outros. Todos foram queimados em nome dos bons costumes. Se êsses livros são considerados as expressões mais importantes da geração de 30, não o são pela vontade dos censores.

Orgulho-me da minha condição de escritor. Orgulho-me mais ainda da função de escritor. E é por isto que sou contra qualquer tipo de censura. Uso como norma aquelas palavras de Péricles no seu "Discurso aos Atenienses": "Lembrai-vos sempre de que não existe felicidade sem liberdade, e de que o fundamento da liberdade é a coragem".

Bem, o desabafo saiu de um jato só. Aqui se despede por hoje o seu amigo de sempre.


A. Tito Filho, 13/06/1970, Jornal do Piauí

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